"Para agradecer a Deus pelas graças que
concedeu à Santíssima Virgem, dirão freqüentemente o Magnificat, a exemplo da
bem-aventurada Maria d’Oignies e de muitos outros santos.
É a única oração e a única obra composta por Maria, ou,
melhor, que Jesus fez por meio dela, pois ele fala pela boca de sua Mãe
Santíssima. É o maior sacrifício de louvor que Deus já recebeu na lei da graça.
É dum lado, o mais humilde e o mais reconhecido e, doutro, o mais sublime e
mais elevado de todos os cânticos. Há neste cântico mistérios tão grandes e tão
ocultos, que os próprios anjos ignoram.
Gerson, que foi um doutor tão sábio quanto piedoso, depois
de empregar grande parte de sua vida escrevendo tratados cheios de erudição e
piedade, sobre os mais difíceis temas, tremeu e vacilou no fim da carreira, ao
empreender a explicação do Magnificat, com que tencionava coroar todas as suas
obras. Num volume in-folio, ele nos diz coisas admiráveis do belo e divino
cântico.
Entre outras, afirma que a Santíssima Virgem o recitava
muitas vezes sozinha, principalmente depois da santa comunhão, em ação de
graças. O sábio Benzônio, num explicação do mesmo cântico, cita vários milagres
operados por sua virtude, e diz que os demônios tremem e fogem, quando ouvem as
palavras do Magnificat: “Fecit potentiam in brachio suo, dispersit superbos
mente cordis sui” (Lc 1, 51) - (TVD, art. 255 - Recitação do Magnificat)".
“Magnificat” é o título latino dado ao “Cântico de Maria”, o
belo poema de Lucas 1, 46-56. Mas se engana quem pensa que Maria pronunciou
tudo aquilo de improviso, dando uma de “repentista”.
O poema é uma coletânea de versos extraídos do Antigo
Testamento, tendo como pano de fundo o chamado “Cântico de Ana” (cf. I Sm
2,1-10).
E, nesse sentido, é poema de mulheres pobres, não só por marcar
o encontro de Maria e Isabel, mas por se constituir em memória de um grupo que
por nós precisa ser conhecido mais profundamente.
Ao atribuir o poema a Santíssima Virgem Maria, a comunidade
de Lucas quer, entre outras coisas, afirmar que a jovem mãe fazia parte dos
pobres de Deus.
Desde a época da destruição do país pela Babilônia, que
aconteceu por volta de 587 a.C., o povo israelita começa a esperar o
restaurador do reino davídico, o Messias.
Com o passar do tempo, vão se constituindo grupos e partidos,
cada um com sua teologia própria, cada um esperando um messias que viesse
satisfazer seus interesses. Começam a se formular compreensões diferentes dessa
figura.
Os fariseus, por exemplo, aguardavam a chegada de um messias
que viesse restaurar o reino davídico a partir da exigência do cumprimento
total da Lei de Moisés. Os zelotas, por sua vez, aguardavam um messias
guerrilheiro que expulsasse a dominação romana por meio de uma revolução
armada.
Apesar dos poucos registros históricos, sabemos da existência de um outro grupo que se reunia para louvar ao Deus dos pobres, na espera de um messias que viesse do meio dos pobres, tal como havia profetizado Zacarias: “Eis que o teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho da jumenta” (Zc 9,9). Trata-se dos ‘anawîm, os pobres de Deus.
Desse grupo faziam parte, provavelmente, Isabel e Zacarias,
os pais de João Batista, justos diante de Deus (cf. Lc 1,5-6); o justo e
piedoso Simeão, que aguardava a consolação de Israel (cf. Lc 2, 25); a
profetiza Ana, com seus oitenta e quatro anos de sonho e esperança (cf. Lc 2,
36-38). E Maria, com seu noivo José, que também era justo, conforme Mateus
1,19.
O termo “justo” é um adjetivo frequentemente atribuído às
pessoas participantes do grupo dos ‘anawîm. É notável a liderança das mulheres
entre eles [‘anawîm]. Muito provavelmente em seus momentos de encontro, de
oração, elas iam coletando frases do Antigo Testamento e compondo canções como
o Magnificat.
Os capítulos iniciais do Evangelho de Lucas recolhem ainda o
chamado “Cântico de Zacarias” (cf. Lc 1, 68-75), outro exemplo desses poemas.
Nossa Senhora sabia de cor essas canções, elas eram a história do seu povo.
Composição de mulheres que conhecem bem as Escrituras
Numa cultura na qual as mulheres não tinham acesso às
letras, chama a atenção como, no Magnificat, se fazem presentes os textos
bíblicos.
É evidente a força feminina na manutenção da história por
meio da memória oral, visto que a escrita estava ligada a pequenos grupos,
normalmente de homens detentores do poder. Assim percebemos como a Santíssima
Virgem e as suas companheiras conheciam bem a história de seu povo e dela
tiravam forças para lutar.
A principal fonte inspiradora do Magnificat é o “Cântico de
Ana”, mulher estéril, por isso discriminada e humilhada. Na amargura, ela chora
e derrama a sua alma diante de Deus (cf. I Sm 1,10.15). Mas sabe expressar a
sua gratidão ao se tornar mãe de Samuel: “Eu o pedi ao Senhor” (1 Sm 1, 20).
Muito sabiamente, o redator de I Samuel a ela atribui o
poema presente em 1Sm 2,1-10. “O meu coração exulta em Deus, a minha força se
exalta, o arco dos poderosos é quebrado, os fracos são cingidos de força” (idem
1.4-5).
Entretanto, esse cântico [Magnificat] percorre vários livros
do Antigo Testamento.
Isaías havia dito: “Transbordo de alegria em Javé, a minha
alma se alegra, porque ele me vestiu com vestes de salvação, cobriu-me com um
manto de justiça” (Is 61,10). Habacuc 3,18 diz algo semelhante: “Eu me
alegrarei em Javé, exultarei no Deus de minha salvação”. A figura do “servo
sofredor” também é retomada, quando o poema diz que o Senhor “socorreu Israel
seu servo” (cf. Lc 1,54).
Em Maria acontece algo extraordinário: toda a sua alma
concebe o Verbo de Deus, porque ela foi imaculada e isenta de vícios, guardou a
sua castidade com pudor inviolável. Assim, com Nossa Senhora, engrandece ao
Senhor aquele que segue dignamente a Jesus Cristo.
A Virgem humilde de Nazaré se torna a Mãe de Deus; jamais a
onipotência do Criador se manifestou de um modo tão pleno. E o coração
castíssimo de Nossa Senhora manifesta de modo transbordante a sua gratidão e a
sua alegria. E então, canta: “A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito
exulta em Deus, meu Salvador”.
Padre Bantu Mendonça K. Sayla