O Tratado da Verdadeira Devoção é um verdadeiro
mundo. Sua densidade teológica e filosófica é tão grande, que para comentá-la
seriam necessários vários volumes. Procuraremos apresentar aqui apenas uma
visão de conjunto da obra, detendo-nos nas partes que nos parecerem mais dignas
de nota. Trata-se de uma obra verdadeiramente profética, tanto no sentido de
ter aberto para as almas de escol um novo rumo de perfeição quanto pelo fato de
revelar eventos futuros.
Nesse
sentido, cumpriu-se ipsis
verbis esta profecia, que o santo fez em relação ao
próprio Tratado. Escreveu
ele: “Vejo, no futuro, animais frementes, que se precipitam furiosos para
dilacerar com seus dentes diabólicos este pequeno manuscrito, e aquele de quem
o Espírito Santo
se serviu para escrevê-lo, ou ao menos para fazê-lo ficar envolto nas trevas e
no silêncio de uma arca, a fim de que ele não apareça” (n.114).
Com
efeito, após a morte do santo, algum colaborador zeloso, porém indiscreto,
talvez por receio dos jansenistas, escondeu os preciosos manuscritos numa caixa
de livros velhos. Sobreveio depois a funesta Revolução Francesa com suas
perseguições, devastações e mortes. Isso fez com que os manuscritos, de 1712,
permanecessem no olvido até serem encontrados muito mais tarde, em 1842, por
um missionário da Companhia de Maria — fundada por São Luís Grignion — que
procurava material para seus sermões.
Para
ilustrar o outro aspecto da profecia — isto é, da perseguição que sofreria seu
autor —, citamos aqui seu próprio testemunho, contido numa carta de 15 de agosto de 1713, que ele escreveu à sua irmã
menos de três anos antes de sua morte: “Se soubésseis, no mínimo, as minhas
cruzes e as minhas humilhações, duvido que desejásseis tão ardentemente
ver-me; porque nunca estou em nenhum sítio sem dar um pedaço da minha cruz aos
meus melhores amigos. Quem me sustenta e ousa declarar-se a meu favor, sofre as
consequências e, por vezes, cai sob os pés do inferno que eu combato, do
mundo, que contradigo, e da carne, que persigo. [Qualquer] formigueiro de
pecados e de pecadores que eu ataque, não me concede, nem a mim nem aos meus,
nenhum descanso: [estou] sempre sobre o que se agita, sempre sobre os
espinhos, sobre pedras cortantes. Sou como uma bola num jogo de péla: atirado
de um lado para o outro com violência; eis o destino de um pobre pecador; há 13 anos, desde que saí [do
seminário] de
Saint-Sulpice, que não me dão tréguas nem repouso”.
A originalidade de Montfort
O Tratado da Verdadeira Devoção à
Santíssima Virgem orientou e conduziu muitas almas no caminho
da perfeição em todo o mundo. “A originalidade maior de Montfort — observa o
Pe. Louis Perouas — consiste, provavelmente, em ter descoberto Maria como
garantia de fidelidade, no sentido de levar o cristão a libertar-se do apego
imperceptível que se esconde em suas melhores ações. Desapego que consiste,
provavelmente, na essência mesma da consagração em forma de escravidão”.
É
preciso ressaltar aqui que São Luís Grignion escreveu seu Tratado para
católicos autênticos.
Por
isso o Pe. William Faber, célebre sacerdote oratoriano inglês do século XIX,
conclui o prefácio de sua tradução do original francês do Tratado com estas
palavras: “Com certeza os que vão ler este livro já amam a Deus e desejariam
amá-lo ainda mais. Todos desejam alguma coisa para a sua glória: a propagação
de uma boa obra, a vinda de melhores tempos, o sucesso de uma devoção. [...]
Qual é, pois, o remédio que lhes falta? Qual o remédio indicado pelo próprio
Deus? É, segundo as revelações dos santos, uma dilatação imensa da devoção à
Santíssima Virgem. Mas, reflitamos bem, o imenso não admite restrições nem
limites”. Por isso nossa devoção à Mãe de Deus deve ser sem limites.
Em
seu Tratado da
Verdadeira Devoção, São Luís Grignion expressa sua
espiritualidade, centrada numa devoção filial e numa entrega total a Nossa Senhora. “Alguns teólogos, surpresos
com as audácias do autor, e especialmente com a sua expressão preferida
de sagrada
escravidão, quiseram diminuir-lhe a obra. As suas
críticas, porém, não impediram a célebre obra de se espalhar, sem reforço de
propaganda, com assombroso sucesso, no mundo inteiro. Hoje está traduzida em
quase todas as línguas: sinal incontestável da sua utilidade e benefício na
Igreja de Deus”.
O Tratado da
Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem foi escrito por São Luís Grignion de
Montfort em 1712, e devido à grande força que esse escrito tem para levar as
pessoas à verdadeira santidade foi fortemente combatido pelo inimigo infernal.
O demônio quis verdadeiramente destruí-lo, mas Deus não permitiu, contudo, o
inimigo escondeu este tratado durante cento e trinta anos. Tudo isso foi
admiravelmente predito e escrito por São Luís, no próprio Tratado da Verdadeira
Devoção onde narra: “Vejo animais frementes que se precipitam furiosos para
destruir com seus dentes diabólicos este pequeno manuscrito e aquele de quem o
Espírito Santo se serviu para compô-lo, ou ao menos para fazê-lo ficar
escondido no silêncio de um baú a fim de que não apareça” (T.V.D. 112).
Assim, este
livro escrito em 1712, desapareceu sendo reencontrado apenas em 1842 em um baú
de livros velhos. Publicado em 1843 tornou-se leitura obrigatória de toda alma
piedosa que buscasse a santidade. De fato, São Luís predisse o desaparecimento
do livro, também, como o seu reaparecimento e o seu sucesso (c.f. T.V.D. 112),
de modo que, depois que foi publicado o tratado, a Santa Escravidão tornou-se a
via espiritual de muitos santos, que se fizeram escravos de Maria Santíssima, e
na escola de seu Imaculado Coração aprenderam a amar a Deus e fazer sua santa
vontade. Santos como: São João Maria Vianney, São João Bosco, São Domingos
Sávio, Santa Terezinha, Santa Gema Galgani, São Pio X, São Pio de Pietrelcina e
tantos outros santos e santas do nosso tempo, viram, na total consagração a
Santíssima Virgem não uma “devoção qualquer” ou “mais uma devoção” mas uma
Devoção Perfeita, aquela devoção querida por Jesus ao fazer de cada um de nós
filhos de sua Mãe Santíssima.
O Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, de São Luís
Maria Grignion de Montfort, que completou 300 anos em 2012, permaneceu por 130
anos no silêncio de um baú.
Irmã
Ágata Ângela, uma Filha da Sabedoria (instituto fundado por São Luís Maria de Montfort), que viveu a
dois séculos atrás, nas crônicas de 1842 escreveu um testemunho direto sobre o
redescobrimento do Tratado da Verdadeira Devoção à Maria:
“Durante a Revolução Francesa as cartas e os manuscritos das comunidades
(fundadas por Montfort) foram escondidos nas fazendas vizinhas, onde
permaneceram sepultados no pó durante diversos anos. Aquilo que foi
reencontrado, foi em parte colocado na biblioteca dos Padres (monfortinos) e
outra parte na Comunidade das Irmãs; o manuscrito em questão (o Tratado) foi
depositado na casa dos Padres (Saint
Spirit) e ali permaneceu desconhecido como havia profetizado o
autor”.
De
fato, São Luís Maria, no ano 1712, nesse manuscrito destinado a tornar-se
célebre, escreveu: “Prevejo que muitos animais frementes virão em fúria para
rasgar com seus dentes diabólicos este pequeno escrito e aquele de quem o Espírito
Santo se serviu para compô-lo. Ou pelo menos procurarão envolver este livrinho
nas trevas e no silêncio de uma arca, a fim de que não apareça.” (TVD 114).
Dia
22 de abril de 1842 o reverendo, Padre Pedro Rauterau, bibliotecário da
Companhia de Maria (Monfortinos), enquanto preparava uma pregação em honra à
Santa Virgem, nosso Senhor lhe colocou entre as mãos este precioso tesouro. O
Padre reconheceu o estilo e o pensamento do Venerável fundador e imediatamente
o entregou ao seu superior (Padre J. Dalin) que reconheceu perfeitamente a
caligrafia. Assim veio à luz aquilo que o santo de Montfort “ensinou com fruto
em público e em privado nas missões por diversos anos” (TVD 110), isto é que
“Por meio da Santíssima Virgem Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio
dela que deve reinar no mundo” (TVD 1).
Esse
livro foi escondido por causa da importância dos seus ensinamentos, ele nos
revela a importância da Santíssima Virgem na história da salvação dos homens,
nos indica como fazê-la reinar nos corações através da consagração total a Ela e assim pertencer
perfeitamente a Cristo, impedindo as insídias do demônio e esmagando a cabeça
da serpente que quer a perdição das almas no esquecimento de Deus e no pecado.
Por isso o demônio tentou destruí-lo ou ao menos escondê-lo.
Observou-se
como a Imaculada Conceição, que esmaga a cabeça da serpente, é um ponto comum a
todas as grandes aparições marianas, reconhecidas pela Igreja, a partir da
aparição de Nossa Senhora das Graças a Santa Catarina Labouré (1830). É também
impressionante a coincidência de datas entre o início do ciclo das aparições
marianas dos últimos dois séculos e o reencontro desse escrito mariano
destinado a formar gerações de santos (1842).
TRATADO DA VERDADEIRA
DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA
VIRGEM
Escrito por São Luís
Maria Grignion de Montfort
19ª edição – Editora
Vozes – Petrópolis, 1992.
1.
Foi pela Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também
por ela que deve reinar no mundo.
2.
Toda a sua vida Maria permaneceu oculta; por isso o Espírito Santo e a
Igreja a chamam Alma Mater – Mãe escondida e secreta.1 Tão
profunda era a sua humildade, que, para ela, o atrativo mais poderoso, mais
constante era esconder-se de si mesma e de toda criatura, para ser conhecida
somente de Deus.
1)
Antífona à Santíssima Virgem para o tempo de Natal; hino “Ave Maris Stella”.
3.
Para atender aos pedidos que ela lhe fez de escondê-la, empobrecê-la e
humilhá-la, Deus providenciou para que oculta ela permanecesse em seu
nascimento, em sua vida, em seus mistérios, em sua ressurreição e assunção,
passando despercebida aos olhos de quase toda criatura humana. Seus
próprios parentes não a conheciam; e os anjos perguntavam muitas vezes uns aos
outros: Quae est ista?... – Quem é esta? (Ct 3, 6; 8, 5), pois que o Altíssimo
lha escondia; ou, se algo lhes desvendava a respeito, muito mais,
infinitamente, lhes ocultava.
4.
Deus Pai consentiu que jamais em sua vida ela fizesse algum milagre, pelo
menos um milagre visível e retumbante, conquanto lhe tivesse outorgado o poder
de fazê-los. Deus Filho consentiu que ela não falasse, se bem lhe houvesse
comunicado a sabedoria divina. Deus Espírito Santo consentiu que os apóstolos e
evangelistas a ela mal se referissem, e apenas no que fosse necessário para
manifestar Jesus Cristo. E, no entanto, ela era a Esposa do Espírito Santo.
5.
Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento2
e domínio ele reservou para si. Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem
aprouve humilhá-la e ocultá-la durante a vida para lhe favorecer a humildade,
tratando-a de mulher – mulier (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma
estrangeira, conquanto em seu Coração a estimasse e amasse mais que todos os
anjos e homens. Maria é a fonte selada (Ct 4, 12) e a
esposa fiel do Espírito Santo, onde só ele pode penetrar. Maria é o santuário,
o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente
que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os
querubins e serafins; e criatura algumas, pura que seja, pode aí penetrar sem
um grande privilégio.
2)...ut soli
Deo cognoscenda reservatur (São Bernardino de Sena, Sermão 51, art. 1, cap. 1).
6.
Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre3
do novo Adão, no qual este se encarnou por obra do Espírito Santo, para aí
operar maravilhas incompreensíveis. É o grande, o divino mundo de
Deus4, onde há belezas e tesouros inefáveis. É a magnificência de
Deus5, em que ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e nele
tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e
escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo
ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: Fecit mihi magna
qui potens est (Lc 1, 49). O mundo desconhece essas coisas porque é inapto
e indigno.
3)
Racionalis secundi Adam paradisus. São Leão Grande (Sermo de Annunctiatione).
4)
Mundus specialissimus altissimi Dei. (São Bernardo).
5)
Magnificentia Dei. Ricardo de São Lourenço (De laud. Virg., lib. IV).
7.
Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram
tão eloqüentes nem mais felizes, – eles o confessam – que ao tomá-la como tema
de suas palavras e de seus escritos. E, depois, proclamam que é
impossível perceber a altura dos seus méritos, que ela elevou até ao trono da
Divindade; que a largura de sua caridade, mais extensa que a terra, não
se pode medir; que está além de toda compreensão a grandeza do poder que ela
exerce sobre o próprio Deus; e, enfim, que a profundeza de sua humildade
e de todas as suas virtudes e graças são um abismo impossível de sondar.
Ó altura incompreensível! Ó largura inefável! Ó grandeza incomensurável! Ó
insondável!
8.
Todos os dias, dum extremo da terra ao outro, no mais alto dos céus, no
mais profundo dos abismos, tudo prega, tudo exalta a incomparável Maria. Os
nove coros de anjos, os homens de todas as idades, condições e religiões, os
bons e os maus. Os próprios demônios são obrigados, de bom ou mau grado, pela
força da verdade, a proclamá-la bem-aventurada. Vibra nos céus, como
diz São Boaventura, o clamor incessante dos anjos: Sancta, sancta, sancta Maria,
Dei Genitrix et Virgo; e milhões e milhões de vezes, todos os dias, eles lhe
dirigem a saudação Angélica: Ave, Maria..., prosternado-se diante dela e
pedindo-lhe a graça de honrá-la com suas ordens. E a todos se avantaja o
príncipe da corte celeste, São Miguel, que é o mais zeloso em render-lhe e
procurar toda a sorte de homenagens, sempre atento, para ter a honra de, à sua
palavra, prestar um serviço a algum dos seus servidores.
9.
Toda a terra está cheia de sua glória, particularmente entre os cristãos,
que a tomam como padroeira e protetora em muitos países, províncias, dioceses e
cidades. Inúmeras catedrais são consagradas sob a invocação do seu
nome. Igreja alguma se encontra sem um altar em sua honra; não há região ou
país que não possua alguma de suas imagens milagrosas, junto das quais todos os
males são curados e se obtêm todos os bens. Quantas confrarias e congregações
erigidas em sua honra! quantos institutos e ordens religiosas abrigados sob seu
nome e proteção! quantos irmãos e irmãs de todas as confrarias , e quantos
religiosos e religiosas a entoar os seus louvores, a anunciar as suas
maravilhas! Não há criancinha que, balbuciando a Ave-Maria, não a
louve; mesmo os pecadores, os mais empedernidos, conservam sempre uma centelha
de confiança em Maria. Dos próprios demônios no inferno, não há um que não a
respeite, embora temendo.
10.
Depois disto é preciso dizer, em verdade, com os santos:
De Maria
nunquam satis... Ainda não se louvou, exaltou, amou e serviu
suficientemente a Maria, pois muito mais louvor, respeito, amor e serviço ela
merece.
11.
É preciso dizer, ainda, com o Espírito Santo: Omnis gloria eius filiae
Regis ab intus – Toda a glória da Filha do Rei está no interior (Sl 44,
14), como se toda a glória exterior, que lhe dão, a porfia, o céu e a terra,
nada fosse em comparação daquela que ela recebe no interior, da parte do
Criador, e que desconhecem as fracas criaturas, incapazes de penetrar o segredo
dos segredos do Rei.
12.
Devemos, portanto, exclamar com o apóstolo: Nec oculus vidit, nec auris
audivit, nec in cor hominis ascendit (1Cor 2, 9) – os olhos não viram, o
ouvido não ouviu, nem o coração do homem compreendeu as belezas, as grandezas e
excelências de Maria, o milagre dos milagres da graça6, da
natureza e da glória. Se quiserdes compreender a Mãe – diz um santo –
compreendei o Filho. Ela é uma digna Mãe de Deus: Hic taceat omnis lingua –
Toda língua aqui emudeça.
6)
Miraculum miraculorum (São João Damasceno, Oratio I de Nativitate B.V.).
13.
Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria,
para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida7,
e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser.
Quando, portanto, e é certo, o conhecimento e o reino de Jesus Cristo tomarem o
mundo, será uma conseqüência necessária do conhecimento e do reino da
Santíssima Virgem Maria. Ela o deu ao mundo a primeira vez, e também, da
segunda, o fará resplandecer.
7)
No sentido de: conhecida insuficientemente, como se depreende de todo este
parágrafo e da expressão: “Jesus Cristo não é conhecido como deve ser”.
Capítulo I
Necessidade da devoção
à Santíssima Virgem
14.
Confesso com toda a Igreja que Maria é uma pura criatura saída das mãos
do Altíssimo. Comparada, portanto, à Majestade infinita ela é menos que
um átomo, é, antes, um nada, pois que só ele é “Aquele que é” (Ex
3, 14) e, por conseguinte, este grande Senhor, sempre independente e
bastando-se a si mesmo, não tem nem teve jamais necessidade da Santíssima
Virgem para a realização de suas vontades e a manifestação de sua glória.
Basta-lhe querer para tudo fazer.
15.
Digo, entretanto, que, supostas as coisas como são, já que Deus quis
começar e acabar suas maiores obras por meio da Santíssima Virgem, depois que a
formou, é de crer que não mudará de conduta nos séculos dos séculos, pois
é Deus, imutável em sua conduta e em seus sentimentos.
Artigo I
Princípios
Primeiro Princípio –
Deus quis servir-se de Maria na Encarnação.
16.
Deus Pai só deu ao mundo seu Unigênito por Maria. Suspiraram os
patriarcas, e pedidos insistentes fizeram os profetas e os santos da lei
antiga, durante quatro milênios, mas só Maria o mereceu, e alcançou graça
diante de Deus8, pela força de suas orações e pela sublimidade de
suas virtudes. Porque o mundo era indigno, diz Santo Agostinho, de
receber o Filho de Deus diretamente das mãos do Pai, ele o deu a Maria a fim de
que o mundo o recebesse por meio dela.
8)
Cf. Lc 1, 30; Invenisti enim gratiam apud Deum.
Em Maria e
por Maria é que o Filho de Deus se fez homem para nossa salvação.
Deus
Espírito Santo formou Jesus Cristo em Maria, mas só depois de lhe ter pedido
consentimento por intermédio de um dos primeiros ministros da corte celestial.
17.
Deus Pai transmitiu a Maria sua fecundidade, na medida em que a podia receber
uma simples criatura, para que ela pudesse produzir o seu Filho e todos os
membros de seu Corpo Místico.
18.
Deus Filho desceu ao seu seio virginal, qual novo Adão no paraíso
terrestre, para aí ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de
graça. Deus, feito homem, encontrou sua liberdade em se ver aprisionado
no seio da Virgem Mãe; patenteou a sua força em se deixar levar por esta Virgem
santa; achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as
criaturas deste mundo, para revelá-las somente a Maria; glorificou sua
independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em
seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida
oculta, até à morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo
sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento
de sua Mãe, como outrora Isaac, como o consentimento de Abraão à vontade de
Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.
Ó admirável
e incompreensível dependência de um Deus, de que nos foi dado conhecer o preço
e a glória infinita, pois o Espírito Santo não a pôde passar em silêncio no
Evangelho, como incógnitas nos ficaram quase todas as coisas maravilhosas que
fez a Sabedoria encarnada durante sua vida oculta. Jesus Cristo deu mais glória
a Deus, submetendo-se a Maria durante trinta anos, do que se tivesse convertido
toda a terra pela realização dos mais estupendos milagres. Oh! quão altamente
glorificamos a Deus, quando, para lhe agradar, nos submetemos a Maria, a
exemplo de Jesus Cristo, nosso único modelo.
19.
Se examinarmos atentamente o resto da vida de Jesus, veremos que foi por
Maria que ele quis começar seus milagres. Pela palavra de Maria ele
santificou São João no seio de Santa Isabel; assim que as palavras brotaram dos
lábios de Maria, João ficou santificado, e foi este seu primeiro e maior
milagre de graça. Foi ao humilde pedido de Maria, que ele, nas núpcias de Caná,
mudou água em vinho, sendo este seu primeiro milagre sobre a natureza. Ele
começou e continuou seus milagres por Maria, e por Maria os continuará até ao
fim dos séculos.
20.
O Espírito Santo, que era estéril em Deus, isto é, não produzia outra pessoa
divina, tornou-se fecundo em Maria. É com ela, nela e dela que ele
produziu sua obra-prima, de um Deus feito homem, e que produz todos os dias,
até ao fim do mundo, os predestinados e os membros do corpo deste Chefe
adorável. Eis por que, quanto mais, em uma alma, ele encontra Maria,
sua querida e inseparável esposa9, mais operante e poderoso se torna para
produzir Jesus Cristo nessa alma, e essa alma em Jesus Cristo.
9)
Sponsa Spiritus Sancti (Santo Idefonso, Líber de Corona Virginis, cap. III. –
Sponsus eius Spiritus veritatis (Belarmino, Concio 2 super “Missus est”).
21.
Não se quer dizer com isto que a Santíssima Virgem dê a fecundidade ao Espírito
Santo, como se ele não a tivesse. Sendo Deus, ele possui a fecundidade ou a
capacidade de produzir, como o Pai e o Filho. Não a reduz, porém, a ação, e não
gera outra pessoa divina. O que se quer dizer é que o Espírito Santo, por
intermédio da Virgem, da qual se quis servir, se bem que não lhe fosse
absolutamente necessário, reduziu ao ato a sua fecundidade, produzindo, nela e
por ela, Jesus Cristo e seus membros. É um mistério da graça inacessível
até aos mais sábios e espirituais dentre os cristãos.
Segundo
Princípio. – Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas
22.
A conduta das três pessoas da Santíssima Trindade, na encarnação e primeira
vinda de Jesus Cristo, é a mesma de todos os dias, de um modo visível, na
Igreja, e esse procedimento há de perdurar até à consumação dos séculos, na
última vinda de Cristo.
23.
Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as
graças e chamou-as Maria10. Este grande Deus tem um tesouro, um
depósito riquíssimo, onde encerrou tudo que há de belo, brilhante, raro e
precioso, até seu próprio Filho; e este tesouro imenso é Maria, que os
anjos chamam o tesouro do Senhor11, e de cuja plenitude os homens se
enriquecem.
10) Appellvit eam
Mariam, quasi mare gratiarum (S. Antonino, Summa, p. IV, tit. 15, cap. 4, § 2).
11)
Ipsa est thesaurus Domini (Idiota, In contemplatione B.M.V.).
24.
Deus Filho comunicou a sua Mãe tudo que adquiriu por sua vida e morte: seus
méritos infinitos e suas virtudes admiráveis. Fê-la tesoureira de tudo
que seu Pai lhe deu em herança; é por ela que ele aplica seus méritos aos
membros do corpo místico, que comunica suas virtudes, e distribui suas graças;
é ela o canal misterioso, o aqueduto, pelo qual passam abundante e docemente
suas misericórdias.
25.
Deus Espírito Santo comunicou a Maria, sua fiel esposa, seus dons
inefáveis, escolhendo-a para dispensadora de tudo que ele possui. Deste modo
ela distribui seus dons e suas graças a quem quer, quanto quer, como quer e
quando quer, e dom nenhum é concedido aos homens, que não passe por suas mãos
virginais. Tal é a vontade de Deus, que tudo tenhamos por Maria e assim
será enriquecida, elevada e honrada pelo Altíssimo, aquela que, em toda a
vida, quis ser pobre, humilde e escondida até ao nada. Eis a opinião da
Igreja e dos Santos Padres.12
12)
Ver, entre outros, São Bernardo e São Bernardino de Sena, que S. Luís Maria
cita mais adiante (141-142).
26.
Se eu me dirigisse aos espíritos fortes desta época, tudo isso, que digo
simplesmente, poderia prová-lo pela Sagrada Escritura, pelos Santos Padres,
citando longas passagens em latim e aduzindo os mais fortes argumentos, que o
Padre Poiré deduz e desenvolve em sua Tríplice coroa da Santíssima Virgem.
Falo, porém, aos pobres e aos simples que, por serem de boa vontade e terem
mais fé que a maior parte dos sábios, crêem com mais simplicidade e mérito, e,
portanto, contento-me de lhes simplesmente a verdade, sem me preocupar em citar
todos os textos latinos, embora mencione alguns, mas sem os rebuscar muito.
Continuemos.
27.
Pois que a graça aperfeiçoa a natureza e a glória aperfeiçoa a graça, é
certo que Nosso Senhor continua a ser, no céu, tão Filho de Maria, como o foi
na terra. Por conseguinte, ele conserva a submissão e obediência do mais
perfeito dos filhos para com a melhor das mães. Cuidemos, porém, de não
atribuir a essa dependência o menor abaixamento ou imperfeição em Jesus Cristo.
Maria está infinitamente abaixo de seu Filho, que é Deus, e,
portanto, não lhe dá ordens, como uma mãe terrestre as dá a seu filho.
Maria,
porque está toda transformada em Deus pela graça e pela glória que, em Deus,
transforma todos os santos, não pede, não quer, não faz a menor coisa contrário
à eterna e imutável vontade de Deus. Quando se lê, portanto, nos escritos de
São Bernardo, São Bernardino, São Boaventura, etc., que no céu e na terra tudo,
o próprio Deus, está submisso à Santíssima Virgem13, devemos entender que a autoridade,
que Deus espontaneamente lhe conferiu, é tão grande que ela parece ter o mesmo
poder que Deus, e que suas preces e rogos são tão eficazes que se
podem tomar como ordens junto de sua Majestade, e ele não resiste nunca às
súplicas de sua Mãe, porque ela é sempre humilde e conformada à vontade divina.
13)
Ver adiante a citação (nº 76).
Se Moisés,
pela força de sua oração, conseguiu sustar a cólera de Deus contra os
israelitas, e de tal modo que o altíssimo e infinitamente misericordioso Senhor
lhe disse que o deixasse encolerizar-se e punir aquele povo rebelde, que
devemos pensar, com muito mais razão, da prece da humilde Maria, a digna Mãe de
Deus, que tem mais poder junto da Majestade divina, que as preces e
intercessões de todos os anjos e santos do céu e da terra?14
14)
S. Agostinho, Sermo 208 in Assumpt., nº 12.
28.
No céu, Maria dá ordens aos anjos e aos bem-aventurados. Para recompensar
sua profunda humildade, Deus lhe deu o poder e a missão de povoar de santos os
tronos vazios, que os anjos apóstatas abandonaram e perderam por orgulho.15
E a vontade do Altíssimo, que exalta os humildes (Lc 1, 52), é
que o céu, a terra e o inferno se curvem, de bom ou mau grado, às ordens da
humilde Maria16, pois ele a fez soberana do céu e da terra, general de seus
exércitos, tesoureira de suas riquezas, dispensadora de sua graças, artífice de
suas grandes maravilhas, reparadora do gênero humano, medidora para os homens,
exterminadora dos inimigos de Deus e a fiel companheira de sua grandezas e de
seus triunfos.
15)
Per Mariam ab hominibus Angelorum chori reintegrantur (São Boaventura -
Speculum B.V., lect. XI, § 6).
16)
In nomine tuo omne genu flectatur caelestium, terrestrium et infernorum (São
Boaventura – Psalter. maius B.V., Cantic. Instar “Cantici trium
puerorum”).
29.
Por meio de Maria, Deus Pai quer que aumente sempre o número de seus filhos,
até a consumação dos séculos, e diz-lhes estas palavras: In Iacob inhabita –
Habita em Jacob (Ecli 24, 13), isto é, faze tua morada e residência em meus
filhos e predestinados, figurados por Jacob e não nos filhos do demônio e nos
réprobos, que Esaú figura.
30.
Assim como na geração natural e corporal há um pai e uma mãe, há, na
geração sobrenatural, um pai que é Deus e uma mãe, Maria Santíssima. Todos os
verdadeiros filhos de Deus e os predestinados têm Deus por pai, e Maria por
mãe; e quem não tem Maria por mãe, não tem Deus por pai. Por isso, os
réprobos, os hereges, os cismáticos, etc., que odeiam ou olham com desprezo ou
indiferença a Santíssima Virgem, não têm Deus por pai, ainda que disto se
gloriem, pois não têm Maria por mãe. Se eles a tivessem por Mãe, haviam de
amá-la e honrá-la, como um bom e verdadeiro filho ama e honra naturalmente sua
mãe que lhe deu a vida.
O sinal mais
infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um réprobo, de
um predestinado, é que o herege e o réprobo ostentam desprezo e indiferença
pela Santíssima Virgem17 e buscam por suas palavras e exemplos, abertamente e
às escondidas, às vezes sob belos pretextos, diminuir e amesquinhar o culto e o
amor a Maria. Ah! Não foi nestes que Deus Pai disse a Maria que fizesse sua
morada, pois são filhos de Esaú.
17)
Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est ut teneat de Maria firmam fidem
(São Boaventura, Psalter. maius B.V., Symbol. Instar Symboli Athanasii).
31.
O desejo de Deus Filho é formar-se e, por assim dizer, encarnar-se todos
os dias, por meio de sua Mãe, em seus membros. Ele lhe diz: “In Israel
hereditare – Possui tua herança em Israel” (Ecli 24, 13), como se dissesse:
Deus, meu Pai, deu-me por herança todas as nações da terra, todos os homens
bons e maus, predestinados e réprobos. Eu os conduzirei, uns com a vara de
ouro, outros com a vara de ferro; serei o pai e advogado de uns, o justo
vingador para outros, o juiz de todos; mas vós, minha querida Mãe, só tereis
por herança e possessão os predestinados, figurados por Israel. Como
sua boa mãe vós lhes dareis a vida, os nutrireis, educareis; e, como sua
soberana, os conduzireis, governareis e defendereis.
32.
“Um grande número de homens nasceu nela”, diz o Espírito Santo:
Homo et homo natus est in ea. Conforme a explicação de alguns Santos Padres o
primeiro homem nascido em Maria é o homem-Deus, Jesus Cristo; o segundo é um
homem puro, filho de Deus e de Maria por adoção. Se Jesus Cristo, o chefe dos
homens, nasceu nela, os predestinados, que são os membros deste chefe, devem
também nascer nela, por uma conseqüência necessária. Não há mãe que dê à luz a
cabeça sem os membros ou os membros sem a cabeça: seria uma monstruosidade da
natureza. Do mesmo modo, na ordem da graça, a cabeça e os membros nascem da
mesma mãe, e, se um membro do Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, um
predestinado, nascesse de outra mãe que Maria, que produziu a cabeça, não seria
um predestinado, nem membro de Jesus Cristo, e sim um monstro na ordem da
graça.
33.
Além disso, pois que Jesus é agora, mais do que nunca, o fruto de Maria, como
lhe repetem mil e mil vezes diariamente o céu e a terra: “...e bendito é
o fruto do vosso ventre”, é certo que Jesus Cristo, para cada homem em
particular, que o possui, é tão verdadeiramente o fruto e obra de Maria como
pra todo o mundo em geral. Deste modo, se qualquer fiel tem Jesus Cristo
formado em seu coração, pode atrever-se a dizer: “Mil graças a Maria!
este Jesus que eu possuo é, com efeito, seu fruto, e sem ela eu jamais o
teria”. Pode-se ainda aplicar-lhes, com mais propriedade que São Paulo
aplica a si próprio, as palavras: “Quos iterum parturio, donec formetur
Christus in vobis” (Gal 4, 19): Dou à luz todos os dias os filhos de Deus, até
que Jesus Cristo seja nele formado em toda a plenitude de sua idade.
Santo
Agostinho, sobrepujando a si mesmo, e tudo o que acabo de dizer, confirma que
todos os predestinados, para serem conformes à imagem do Filho de Deus, são
neste mundo ocultos no seio da Santíssima Virgem, e aí guardados, alimentados,
mantidos e engrandecidos por esta boa Mãe, até que ela os dê à glória, depois
da morte, que é propriamente o dia de seu nascimento, como qualifica a Igreja a
morte dos justos. Ó mistério de graça, que os réprobos desconhecem e os
predestinados conhecem muito pouco.
34.
É vontade de Deus Espírito Santo que nela e por ela se formem eleitos. “In
electis meis mitte radices” (Ecli 24, 12), lhe diz ele: Minha bem-amada e minha
esposa, lança em meus eleitos as raízes de todas as virtudes, a fim de que eles
cresçam de virtude em virtude e de graça em graça. Tive tanta complacência em
ti, quando vivias na terra, praticando as mais sublimes virtudes, que desejo
ainda encontrar-te sobre a terra sem que deixes de estar no céu.
Reproduze-te,
portanto, em meus eleitos. Que eu veja neles com complacência as raízes de tua
fé invencível, de tua humildade profunda, de tua mortificação universal, de tua
oração sublime, de tua caridade ardente, de tua firmíssima esperança e de todas
as tuas virtudes. É sempre a minha esposa tão fiel, tão pura e tão fecunda como
nunca: que tua fé me dê fiéis, que tua pureza me dê virgens, que tua
fecundidade me dê eleitos e templos.
35.
Quando Maria lança suas raízes em uma alma, maravilhas de graça se
produzem, que só ela pode produzir, pois é a única Virgem fecunda que não teve
jamais, nem terá semelhante em pureza e fecundidade.
Maria
produziu, com o Espírito Santo, a maior maravilha que existiu e existirá – um
Deus-homem; e ela produzirá, por conseguinte, as coisas mais admiráveis que hão
de existir nos últimos tempos. A formação e educação dos grandes santos,
que aparecerão no fim do mundo, lhe está reservada, pois só esta Virgem
singular e milagrosa pode produzir, em união com o Espírito santo, as obras
singulares e extraordinárias.
36.
Quando o Espírito Santo, seu esposo, a encontra numa alma, ele se apodera
dessa alma, penetra-a com toda a plenitude, comunicando-se-lhe abundantemente e
na medida que lhe concede sua esposa; e uma das razões por que, hoje em dia, o
Espírito Santo não opera, nas almas, maravilhas retumbantes, é não encontrar
ele uma união bastante forte entre as almas e sua esposa fiel e inseparável.
Digo esposa inseparável porque, depois que este Amor substancial do Pai e do
Filho desposou Maria para produzir Jesus Cristo, o chefe dos eleitos, e Jesus
Cristo nos eleitos, nunca a repudiou, pois ela tem sido sempre fiel e fecunda.
Artigo II
Conseqüências
Primeira conseqüência.
– Maria é a Rainha dos corações
37.
Do que ficou dito, deve-se concluir evidentemente que:
Primeiro,
Maria recebeu de Deus um grande domínio sobre as almas dos eleitos; pois ela
não pode estabelecer neles sua residência, como Deus Pai lhe ordenou; não pode
formá-los, nutri-los, fazê-los nascer para a vida eterna, como sua mãe,
possuí-los como sua herança e partilha, formá-los em Jesus Cristo e Jesus
Cristo neles; não pode implantar em seus corações as raízes de suas virtudes, a
ser a companheira inseparável do Espírito Santo em todo os seus trabalhos de
graça; não pode, repito, fazer todas estas coisas, se não tiver direito e
domínio sobre suas almas, por uma graça singular do Altíssimo. E esta graça,
que lhe deu autoridade sobre o Filho único e natural de Deus, lhe foi concedida
também sobre seus filhos adotivos, não só quanto ao corpo, o que seria pouco,
mas também quanto à alma.
38.
Maria é a Rainha do céu e da terra, pela graça, como Jesus é o rei por
natureza e conquista. Ora, como o reino de Jesus Cristo compreende
principalmente o coração ou o interior do homem, conforme a palavra: “O
reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17, 21), o reino da Santíssima
Virgem está principalmente no interior do homem, isto é, em sua alma, e é
principalmente nas almas que ela é mais glorificada com seu Filho, do que em
todas as criaturas visíveis, e podemos chamá-la com os santos a Rainha
dos corações.
Segunda
conseqüência. – Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim
39.
Em segundo lugar, é preciso concluir que a Santíssima Virgem, sendo necessária
a Deus, de uma necessidade chamada hipotética, devido à sua vontade, é muito
mais necessária aos homens para chegarem a seu último fim. Não se confunda,
portanto, a devoção à Santíssima Virgem com a devoção aos outros santos, como
se não fosse mais necessária que a destes, e apenas de superrogação.
§
1. A devoção à santa Virgem é necessária a todos os homens para conseguirem a
salvação.
40.
O douto e piedoso Suárez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto Justo Lípsio,
doutor da universidade de Lovaina, e muitos outros, provaram
incontestavelmente, apoiados na opinião dos Santos Padres, entre outros, Santo
Agostinho, Santo Efrém, diácono de Edessa, São Cirilo de Jerusalém, São Germano
de Constantinopla, São João de Damasco, Santo Anselmo, São Bernardo, São
Bernardino, Santo Tomás e São Boaventura, que a devoção à Santíssima
Virgem é necessária à salvação, e que é um sinal infalível de condenação
– opinião do próprio Ecolampádio e vários outros hereges, – não ter estima e
amor à Santíssima Virgem. Ao contrário, é indício certo de predestinação,
ser-lhe inteira e verdadeiramente devotado17.
17)
A verdadeira devoção à Santíssima Virgem consiste em se lhe devotar e entregar.
O culto de dulia é a dependência, a servidão (S. Th. – Sum. Theol. 2-2, q. 103,
a. 3, in fine corp.); o culto de hiperdulia consite numa dependência mais
perfeita à Santíssima Virgem, ou, em outras palavras na escravidão preconizada
por São Luís Maria de Montfort.
41.
As figuras e palavras do Antigo e do Novo Testamento o provam; a opinião e os
exemplos dos santos o confirmam; a razão e a experiência o ensinam e
demonstram; o próprio demônio e seus asseclas, premidos pela força da verdade,
riram-se muitas vezes constrangidos a confessá-lo a seu pesar. De todas as
passagens dos Santos Padres e doutores que compilei para provar esta verdade,
cito apenas uma para não me alongar: “Tibi devotum esse, est arma quaedam
salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri...” S. João Damasc.) – Ser
vosso devoto, ó Virgem Santíssima, é uma arma de salvação que Deus dá, àqueles
que quer salvar.
42.
Eu poderia repetir aqui várias histórias que provam o que afirmo. Entre outras,
primeiro aquela que vem narrada nas crônicas de São Francisco, em que se conta
que o santo viu, em êxtase, uma escada enorme, em cujo topo, apoiado no céu,
avultava a Santíssima Virgem. E o santo compreendeu que aquela escada ele devia
subir para chegar ao céu; segundo a outra, narrada nas crônicas de São
Domingos: Quando o santo pregava o rosário nas proximidades de
Carcassona, quinze mil demônios, que possuíam a alma de um infeliz herege,
foram obrigados, por ordem da Santíssima Virgem, a confessar muitas verdades
grandes e consoladoras, referentes à devoção a Maria. E eles, para
própria confusão, o fizeram com tanto ardor e clareza que não se pode ler essa
autêntica narração e o panegírico, que o demônio, embora a contragosto, fez da
devoção mariana, sem derramar lágrimas de alegria, ainda que pouco devoto se
seja da Santíssima Virgem.
§
2. A devoção à Santíssima Virgem é mais necessária ainda àqueles chamados a uma
perfeição particular.
43.
Se a devoção à Virgem Santíssima é necessária a todos os homens para
conseguirem simplesmente a salvação, é ainda mais para aqueles que são chamados
a uma perfeição particular; nem creio que uma pessoa possa adquirir uma união
íntima com Nosso Senhor e uma perfeita fidelidade ao Espírito Santo, sem uma
grande união com a Santíssima Virgem e uma grande dependência de seu socorro.
44.
Só Maria achou graça diante de Deus (Lc 1, 30) sem auxílio de
qualquer outra criatura. E todos, depois dela, que acharam graça diante de
Deus, acharam-na por intermédio dela e é só por ela que acharão graça os que
ainda virão.18 Maria era cheia de graça quando o arcanjo Gabriel a saudou
(Lc 1, 28) e a graça superabundou quando o Espírito Santo a
cobriu com sua sombra inefável (Lc 1, 35). E de tal modo ela aumentou
essa dupla plenitude, de dia a dia, de momento a momento, que chegou a um ponto
imenso e inconcebível de graça, de sorte que o Altíssimo a fez tesoureira de
todos os seus bens, dispensadora de suas graças, para enobrecer, elevar e
enriquecer a quem ela quiser, para fazer entrar quem ela quiser no caminho
estreito do céu, para deixar passar, apesar de tudo, quem ela quiser pela porta
estreita da vida eterna. E para dar o trono, o cetro, e a coroa de rei a quem
ela quiser. Jesus é em toda parte e sempre o fruto e o Filho de Maria; e Maria
é em toda parte a verdadeira árvore que dá o fruto da vida, e a verdadeira mãe
que o produz19.
19)
Cf. acima, nº 33.
45.
A Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros do divino amor, e o
poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da perfeição, e de
nesses caminhos fazer entrar os outros. Só Maria dá aos miseráveis
filhos de Eva infiel a entrada no paraíso terrestre, para aí espairecerem
agradavelmente com Deus, para aí, com segurança, se ocultarem de seus inimigos,
para aí, sem mais receio da morte, se alimentarem deliciosamente do fruto das
árvores da vida e da ciência do bem e do mal, e para sorverem longamente as
águas celeste desta bela fonte que jorra com tanta abundância; ou melhor, como
ela mesma é esse paraíso terrestre ou essa terra virgem e abençoada, da qual
Adão e Eva, pecadores, foram expulsos, ela só dá entrada àqueles, que lhe apraz
deixar entrar e para torná-los santos.
46.
Todos os ricos do povo, para me servir da expressão do Espírito Santo (Sl
44, 13), suplicarão, conforme a explicação de São Bernardo, vossa face em todos
os séculos, e particularmente no fim do mundo; isto é, os mais santos, as
almas mais ricas em graça e em virtudes serão as mais assíduas em rogar à Santíssima
Virgem que lhes esteja sempre presente, como seu perfeito modelo a imitar, e
que as socorra com seu auxílio.
47.
Disse que isto aconteceria particularmente no fim do mundo e em breve, porque o
Altíssimo e sua santa Mãe devem suscitar grandes santos, de uma santidade tal
que sobrepujarão a maior parte dos santos, como os cedros do Líbano se
avantajam às pequenas árvores em redor, segundo revelação feita a uma santa
alma.
48.
Estas grandes almas, cheias de graça e de zelo, serão escolhidas em
contraposição aos inimigos de Deus a borbulhar em todos os cantos, e elas serão
especialmente devotas da Santíssima Virgem, esclarecidas por sua luz,
alimentadas de seu leite, conduzidas por seu espírito, sustentadas por seu
braço e guardadas sob sua proteção, de tal modo que combaterão com uma das mãos
e edificarão com a outra (cf. Ne 4, 17). Com a direita combaterão,
derrubarão, esmagarão os hereges com suas heresias, os cismáticos com seus
cismas, os idólatras com suas idolatrias, e os ímpios com suas impiedades; e
com a esquerda edificarão o templo do verdadeiro Salomão e a cidade
mística de Deus, isto é, a Santíssima Virgem que os Santos Padres
chamam “o templo de Salomão”20 e “a cidade de Deus”21. Por suas palavras
e por seu exemplo, arrastarão todo o mundo à verdadeira devoção e isto
lhes há de atrair inimigos sem conta, mas também vitórias inumeráveis e glória
para o único Deus. É o que Deus revelou a São Vicente Ferrer, grande apóstolo
de seu século, e que se encontra assinalado em uma de suas obras.
20)
“Templum Salomonis”. Idiota, De B.V. p. XVI, contemplação 7.
21)
“Civitas Dei”. S. Agostinho, Enarrat in Os. 142, n. 3.
O mesmo
parece ter predito o salmo 58 (14, 15), em que se lê: “Et scient quia Deus
dominabitur Jacob et finium terrae; convertentur ad vesperam, et famem
patientur ut canes, et circuibunt civitatem – E saberão que Deus reinará
sobre Jacob, e até os confins da terra; voltarão à tarde, e padecerão fome como
cães, e rodearão a cidade, em busca do que comer”. Esta cidade que os homens
encontrarão no fim do mundo para se converterem e saciarem a sua fome de
justiça, é a Santíssima Virgem, que o Espírito Santo denomina “cidade de Deus” (Sl
86, 3).
§
3. A devoção à Santíssima Virgem será especialmente necessária nesses últimos
tempos.
1.
Papel especial de Maria nos últimos tempos
49.
Por meio de Maria começou a salvação do mundo e é por Maria que deve ser
consumada. Na primeira vinda de Jesus Cristo, Maria quase não apareceu, para
que os homens, ainda insuficientemente instruídos e esclarecidos sobre a pessoa
de seu Filho, não se lhe apegassem demais e grosseiramente, afastando-se,
assim, da verdade. E isto teria aparentemente acontecido devido aos encantos admiráveis
com que o próprio Deus lhe havia ornado a aparência exterior. São Dionísio, o
Areopagita, o confirma numa página que nos deixou 22 e em que diz que, quando a
viu, tê-la-ia tomado por uma divindade, tal o encanto que emanava de sua pessoa
de beleza incomparável, se a fé, em que estava bem confirmado, não lhe
ensinasse o contrário. Mas, na segunda vinda de Jesus Cristo, Maria
deverá ser conhecida e revelada pelo Espírito Santo, a fim de que por ela seja
Jesus Cristo conhecido, amado e servido, pois já não subsistem as razões que
levaram o Espírito Santo a ocultar sua esposa durante a vida e a revelá-la só
pouco depois da pregação do Evangelho.
50.
Deus quer, portanto, nesses últimos tempos, revelar-nos e manifestar Maria, a
obra-prima de suas mãos:
1º Porque ela
se ocultou neste mundo, e, por sua humildade profunda, se colocou abaixo do pó,
obtendo de Deus, dos apóstolos e evangelistas, não ser quase mencionada.
2º Porque,
sendo a obra-prima das mãos de Deus, tanto aqui em baixo, pela graça, como no
céu, pela glória, ele quer que, por ela, os viventes o louvem e glorifique
sobre a terra.
3º Visto ser
ela a aurora que precede e anuncia o Sol da justiça, Jesus Cristo, deve ser
conhecida e notada para que Jesus Cristo o seja.
4º Pois que é
a via pela qual Jesus Cristo nos veio a primeira vez, ela o será ainda na
segunda vinda, embora de modo diferente.
5º Pois que é
o meio seguro e o caminho reto e imaculado para se ir a Jesus Cristo e
encontrá-lo plenamente, é por ela que as almas, chamadas a brilhar em
santidade, devem encontrá-lo. Quem encontrar Maria encontrará a vida (cf. Prov
8, 35), isto é, Jesus Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6).
Mas não pode encontrar Maria quem não a procura; quem não a conhece, e ninguém
procura nem deseja o que não conhece. É preciso, portanto, que Maria seja, mais
do que nunca, conhecida, para maior conhecimento e maior glória da Santíssima
trindade.
6º Nesses
últimos tempos, Maria deve brilhar, como jamais brilhou, em misericórdia, em
força e graça. Em misericórdia para reconduzir e receber amorosamente os pobres
pecadores e desviados que se converterão e voltarão ao seio da Igreja católica;
em força contra os inimigos de Deus, os idólatras, cismáticos, maometanos,
judeus e ímpios empedernidos, que se revoltarão terrivelmente para seduzir e
fazer cair, com promessas e ameaças, todos os que lhes forem contrários. Deve,
enfim, resplandecer em graça, para animar e sustentar os valentes soldados e
fiéis de Jesus Cristo que pugnarão por seus interesses.
7º Maria
deve ser, enfim, terrível para o demônio e seus sequazes como um exército em
linha de batalha, principalmente n esses últimos tempos, pois o demônio,
sabendo bem que pouco tempo lhe resta para perder as almas, redobra cada dia
seus esforços e ataques. Suscitará, em breve, perseguições cruéis e terríveis
emboscadas aos servidores fiéis e aos verdadeiros filhos de Maria, que mais
trabalho lhe dão para vencer.
51.
É principalmente a estas últimas e cruéis perseguições do demônio, que se
multiplicarão todos os dias até ao reino do Anticristo, que se refere aquela
primeira e célebre predição e maldição que Deus lançou contra a serpente no
paraíso terrestre. Vem a propósito explicá-la aqui, para glória da Santíssima
Virgem, salvação de seus filhos e confusão do demônio.
“Inimicitias
ponan inter te et mulierem, et semen tuum et semen illius; ipsa conteret caput
tuum, et tu insidiaberis calcaneo eius” (Gn 3, 15): Porei
inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela.
Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar.
52.
Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que
não só há de durar, mas aumentar até ao fim: a inimizade entre Maria, sua
digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os
filhos e sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível inimiga que
Deus armou contra o demônio. Ele lhe deu até, desde o paraíso, tanto
ódio a esse amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrira
malícia desta velha serpente, tanta força para vencer, esmagar e aniquilar esse
ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio é maior que o que lhe
inspiram todos os anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus. Não que a
ira, o ódio, o poder de Deus não sejam infinitamente maiores que os da
Santíssima Virgem, pois as perfeições de Maria são limitadas, mas, em primeiro
lugar, Satanás, porque é orgulhoso, sofre incomparavelmente mais, por ser
vencido e punido pela pequena e humilde escrava de Deus, cuja humildade o
humilha mais que o poder divino; segundo, porque Deus concedeu a Maria
tão grande poder sobre os demônios, que, como muitas vezes se viram obrigados a
confessar, pela boca dos possessos, infunde-lhes mais temor um só de seus
suspiros por uma alma, que as orações de todos os santos; e uma só de suas
ameaças que todos os outros tormentos.
53.
O que Lúcifer perdeu por orgulho, Maria ganhou por humildade. O que Eva
condenou e perdeu pela desobediência, salvou-o Maria pela obediência. Eva,
obedecendo à serpente, perdeu consigo todos os seus filhos e os entregou ao
poder infernal; Maria, por sua perfeita fidelidade a Deus, salvou consigo todos
os seus filhos e servos e os consagrou a Deus.
54.
Deus não pôs somente inimizade, mas inimizades, e não somente entre Maria e o
demônio, mas também entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridade do
demônio. Quer dizer, Deus estabeleceu inimizades, antipatias e ódios secretos
entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e
escravos do demônio. Não há entre eles a menor sombra de amor, nem
correspondência íntima existe entre uns e outros.
Os filhos de
Belial, os escravos de Satã, os amigos do mundo (pois é a mesma coisa) sempre
perseguiram até hoje e perseguirão no futuro aqueles que pertencem à Santíssima
Virgem, como outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacob,
figurando os réprobos e os predestinados. Mas a humilde Maria será sempre
vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que
ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela
descobrirá sempre sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais,
desfará seus conselhos diabólicos, e até ao fim dos tempos garantirá seus fiéis
servidores contra as garras de tão cruel inimigo.
Mas o poder
de Maria sobre todos os demônios há de patentear-se com mais intensidade, nos
últimos tempos, quando Satanás começar a armar insídias ao seu calcanhar, isto
é, aos seus humildes servos, aos seus pobres filhos, os quais ela suscitará
para combater o príncipe das trevas. Eles serão pequenos e pobres aos
olhos do mundo, e rebaixados diante de todos como o calcanhar em comparação com
os outros membros do corpo. Mas, em troca, eles serão ricos em graças de
Deus, graças que Maria lhes distribuirá abundantemente. Serão grandes e
notáveis em santidade diante de Deus, superiores a toda criatura, por seu zelo
ativo, e tão fortemente amparados pelo poder divino, que, com a humildade de
seu calcanhar e em união com Maria, esmagarão a cabeça do demônio e promoverão
o triunfo de Jesus Cristo.
2.
Os apóstolos dos últimos tempos
55.
Deus quer, finalmente, que sua Mãe Santíssima seja agora mais conhecida,
mais amada, mais honrada, como jamais o foi. E isto acontecerá, sem dúvida, se
os predestinados puserem em uso, com o auxílio do Espírito Santo, a prática
interior e perfeita que lhes indico a seguir. E, se a observarem com
fidelidade, verão, então, claramente, quanto lho permite a fé, esta bela
estrela do mar, e chegarão a bom porto, tendo vencido as tempestades e os
piratas. Conhecerão as grandezas desta soberana e se consagrarão
inteiramente a seu serviço, como súditos e escravos de amor. Experimentarão
suas doçuras e bondades maternais a amá-la-ão ternamente como seus filhos
estremecidos. Conhecerão as misericórdias de que ela é cheia e a necessidade
que têm de seu auxílio, e há de recorrer a ela em todas as circunstâncias como
à sua querida advogada e medianeira junto de Jesus Cristo. Reconhecerão que ela
é o meio mais seguro, fácil, mais rápido e mais perfeito de chegar a Jesus
Cristo, e se lhe entregarão de corpo e alma, sem restrições, para assim também
pertencerem a Jesus Cristo.
56.
Mas quem serão esses servidores, esses escravos e
filhos de Maria?
Serão
ministros do Senhor ardendo em chamas abrasadoras, que lançarão por toda a
parte o fogo do divino amor.
Serão “sicut
sagittae in manu potentis” (Sl 126, 4) – flechas agudas nas mãos de Maria
toda-poderosa, pronta a traspassar seus inimigos.
Serão filhos
de Levi, bem purificados no fogo das grandes tribulações, e bem colados a Deus22,
que levarão o ouro do amor no coração, o incenso da oração no espírito, e a
mirra da mortificação no corpo e que serão em toda parte para os pobres e os
pequenos o bom odor de Jesus Cristo, e para os grandes, os ricos e os
orgulhosos do mundo, um odor repugnante de morte.
22)
Tradução enérgica da palavra de São Paulo (1Cor 6, 17): “Qui adhaeret Domino”.
57.
Serão nuvens trovejantes esvoaçando pelo ar ao menor sopro do Espírito Santo,
que, sem apegar-se a coisa alguma nem admirar-se de nada, nem preocupar-se,
derramarão a chuva da palavra de Deus e da vida eterna. Trovejarão contra o
pecado, e lançarão brados contra o mundo, fustigarão o demônio e seus asseclas,
e, para a vida ou para a morte, traspassarão lado a lado, com a espada de dois
gumes da palavra de Deus (Cf. Ef 6, 17), todos aqueles a quem forem enviados da
parte do Altíssimo.
58.
Serão verdadeiros apóstolos dos últimos tempos, e o Senhor das virtudes
lhes dará a palavra e a força para fazer maravilhas e alcançar vitórias
gloriosas sobre seus inimigos; dormirão sem ouro nem prata, e, o que é
melhor, sem preocupações no meio dos outros padres, eclesiásticos e clérigos,
“intermédios cleros” (Sl 67, 14) e, no entanto, possuirão as asas
prateadas da pomba, para voar, com a pura intenção da glória de Deus e da
salvação das almas, aonde os chamar o Espírito Santo, deixando após si, nos
lugares em que pregarem, o ouro da caridade que é o cumprimento da lei (Rom
13, 10).
59.
Sabemos, enfim, que serão verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, andando
nas pegadas da pobreza e humildade, do desprezo do mundo e caridade, ensinado o
caminho estreito de Deus na pura verdade, conforme o santo Evangelho, e não
pelas máximas do mundo, sem se preocupar nem fazer acepção de pessoa alguma,
sem poupar, escutar ou temer nenhum mortal, por poderoso que seja. Terão na
boca a espada de dois gumes da palavra de Deus; em seu ombros ostentarão o
estandarte ensangüentado da cruz, na direita, o crucifixo, na esquerda o
rosário, no coração os nomes sagrados de Jesus e de Maria, e, em toda a sua
conduta, a modéstia e a mortificação de Jesus Cristo.
Eis os
grandes homens que hão de vir, suscitados por Maria, em obediência às ordens do
Altíssimo, para que o seu império se estenda sobre o império dos ímpios, dos
idólatras e dos maometanos. Quando e como acontecerá?... Só Deus o sabe!...
Quanto a nós, cumpre calar-nos, orar, suspirar e esperar: Exspectans
exspectavi (Sl 39, 2).
Capítulo II
Verdades fundamentais
da devoção à Santíssima Virgem
60.
Até aqui dissemos alguma coisa sobre a necessidade que temos da devoção à
Santíssima Virgem. Com o auxílio de Deus direi agora em que consiste esta
devoção, expondo, porém, antes, algumas verdades fundamentais, que esclarecerão
esta grande e sólida devoção que quero manifestar.
Artigo I
Jesus
Cristo é o fim último da devoção à Santíssima Virgem
61.
Primeira verdade. – Jesus Cristo,
nosso salvador, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, deve ser o fim último de
todas as nossas devoções; de outro modo, elas serão falsas e enganosas.
Jesus Cristo é o Alfa e Omega23, o princípio e o fim de todas as
coisas.
Nós só
trabalhamos, como diz o apóstolo, para tornar todo homem perfeito em Jesus
Cristo, pois é em Jesus Cristo que habita toda a plenitude da Divindade e todas
as outras plenitudes de graças, de virtudes, de perfeições; porque nele somente
fomos abençoados de toda a bênção espiritual; porque é nosso único mestre que
deve ensinar-nos, nosso único Senhor de quem devemos depender, nosso único
chefe ao qual devemos estar unidos, nosso único modelo, com o qual devemos
conformar-nos, nosso único médico que nos há de curar, nosso único pastor que
nos há de alimentar, nosso único caminho que devemos trilhar, nossa única
verdade que devemos crer, nossa única vida que nos há de vivificar, e nosso
tudo em todas as coisas, que deve bastar-nos.
Abaixo do
céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos. Deus
não nos deu outro fundamento para nossa salvação, nossa perfeição e nossa
glória, senão Jesus Cristo. Todo edifício cuja base não assentar sobre esta
pedra firme, estará construído sobre areia movediça, e ruirá fatalmente, mais
cedo ou mais tarde. Todo fiel que não está unido a ele, como um galho ao tronco
da videira, cairá e secará, e será por fim atirado ao fogo. Fora dele tudo é
ilusão, mentira, iniqüidade, inutilidade, morte e danação. Se estamos, porém,
em Jesus Cristo e Jesus Cristo em nós, não temos danação a temer; nem os anjos
do céu, nem os homens da terra, nem criatura alguma nos pode embaraçar, pois
não pode separar-nos da caridade de Deus que está em Jesus Cristo. Por Jesus
Cristo, com Jesus Cristo, em Jesus Cristo, podemos tudo: render toda a honra e
glória ao Pai, em unidade do Espírito Santo e tornar-nos perfeitos e ser para
nosso próximo um bom odor de vida eterna.
62.
Se estabelecermos, portanto, a sólida devoção à Santíssima Virgem, teremos
contribuído para estabelecer com mais perfeição a devoção a Jesus Cristo,
teremos proporcionado um meio fácil e seguro de achar Jesus Cristo. Se a
devoção à Santíssima Virgem nos afastasse de Jesus Cristo, seria preciso
rejeitá-la como uma ilusão do demônio. Mas é tão o contrário, que, como já fiz
ver e farei ver, ainda, nas páginas seguintes, esta devoção só nos é necessária
para encontrar Jesus Cristo, amá-lo ternamente e fielmente servi-lo.
23)
As páginas eloqüentes que seguem são tiradas quase exclusivamente da Sagrada
Escritura. Cf., p. ex., Ap 1, 8; Cl 2, 8; Mt 23, 10; Jo 13, 13; 1Cor 8, 6; Cl
1, 18; Jo 13, 15; 10, 16; 14, 6; At 9, 12; 1Cor 3, 11; Mt 7, 26-27; Jo 15, 6;
Rm 8, 38-39; etc.
63.
Volto-me, aqui, um momento, pra vós, ó Jesus, a fim de queixar-me
amorosamente à vossa divina majestade, de que a maior parte dos cristãos, mesmo
os mais instruídos desconhecem a ligação imprescindível que existe entre vós e
vossa Mãe Santíssima. Vós, Senhor, estais sempre com Maria, e Maria
sempre convosco, nem pode estar sem vós; de outro modo, ela deixaria de ser o
que é; e de tal maneira está ela transformada em vós pela graça, que já não
vive, já não existe; sois vós, meu Jesus, que viveis e reinais nela, mais
perfeitamente que em todos os anjos e bem-aventurados. Ah! Se
conhecêssemos a glória e o amor que recebeis nesta admirável criatura, bem
diferentes seriam os nossos sentimentos a respeito de vós e dela. Maria
está tão intimamente unida a vós que mais fácil seria separar do sol a luz, e
do fogo o calor; digo mais: com mais facilidade se separariam de vós os anjos e
os santos que a divina Mãe, pois que ela vos ama com amais ardor e vos
glorifica com mais perfeição que todas as vossas outras criatura juntas.
64.
Depois disto, meu amável Mestre, não é triste e lamentável ver a ignorância e
as trevas em que jazem todos os homens na terra, a respeito de vossa Mãe
Santíssima? Não falo dos idólatras e pagãos, que, não vos conhecendo, também
não se importam de conhecê-la; nem falo dos hereges e cismáticos, que não têm a
peito ser devotos de vossa Mãe Santíssima, a não ser de um modo especulativo,
seco, estéril e indiferente. Estes senhores raras vezes falam de Maria e da
devoção que se lhe deve ter, porque, dizem, receiam que se abuse dessa devoção
e que se vos ofenda, honrando excessivamente vossa Mãe Santíssima.
Se vêem ou
ouvem algum devoto da Santíssima Virgem falar muitas vezes, de um modo terno,
forte e persuasivo, da devoção a esta boa Mãe, como de um meio seguro e sem
ilusão, dum caminho curto e sem perigo, duma via imaculada e sem imperfeição, e
dum segredo maravilhoso para chegar a vós e vos amar perfeitamente, clamam
contra ele, e lhe apresentam mil razões falsas, para provar-lhes que não é
necessário falar tanto a respeito da Santíssima Virgem, que há muito abuso
nessa devoção, que é preciso empenhar-se em destruir, e aplicar-se em falar
sobre vós em vez de favorecer a devoção à Virgem Maria, a quem o povo já ama
suficientemente.
Às vezes
metem-se a falar da devoção à vossa Mãe Santíssima, não, porém, para assentá-la
e propagá-la, e sim para destruir os abusos que dela se fazem. Estes
senhores são, no entanto, desprovidos de piedade, e não têm por vós sincera
devoção, pois que não a têm a Maria. Consideram o rosário, o escapulário, o
terço, como devoções de mulheres, próprias de ignorantes, sem as quais se pode
obter muito bem a salvação. E se lhes cai nas mãos algum devoto da Virgem
Santíssima, que recita o seu terço ou pratica qualquer outra devoção Mariana,
mudam-lhe em pouco tempo o espírito e o coração: em lugar do terço lhe
aconselham recitar os sete salmos; em vez da devoção à Santíssima Virgem aconselham
a devoção a Jesus Cristo.
Ó meu amável
Jesus, terá essa gente o vosso espírito? Será possível que vos agradem, agindo
desse modo? Poderá alguém agradar-vos sem fazer todos os esforços para
agradar a Maria, por medo de vos desagradar? A devoção à vossa Mãe impede a
vossa? Atribuir-se-á ela as honras que lhe damos? Formará ela um
partido diverso do vosso? É ela, acaso, uma estrangeira sem a menor ligação
convosco? É desagradar-vos querer agradecer-lhe? Separamo-nos, talvez, ou nos
afastamos de vosso amor, se nos damos a ela e a amamos?
65.
Entretanto, meu amável Mestre, a maior parte dos sábios, em castigo de seu
orgulho, não se afastariam mais da devoção à Santíssima Virgem, nem a olhariam
com mais indiferença, se tudo o que acabo de dizer fosse verdade. Guardai-me,
Senhor, guardai-me de seus sentimento e de suas práticas, e dai-me uma parte
dos sentimentos de reconhecimento, de estima, de respeito e de amor, que tendes
para com vossa Mãe Santíssima, a fim de que eu vos ame e glorifique na medida
em que vos imitar e mais de perto vos seguir.
66.
Concedei-me a graça de louvar dignamente vossa Mãe Santíssima, como se
nada fosse o que, até aqui, disse em sua honra. “Fac me digne tuam
Matrem collaudare”, a despeito de todos os seus inimigos, que são os vossos, e
que eu lhes repita com os santos: “Nom praesumat aliquis Deum se habere
propitium qui bem edictam Matrem offensam habuerit. – Não presuma receber
a graça de Deus, quem ofende sua Mãe Santíssima”.
67.
E, para alcançar de vossa misericórdia uma verdadeira devoção a vossa Mãe
Santíssima, e inspirá-la a toda a terra, fazei que eu vos ame ardentemente, e
recebei para este fim a súplica ardente que vos dirijo com Santo Agostinho24 e
vossos verdadeiros amigos:
24)
Meditationum lib. I, cap. XVIIIm n. 2 (inter opera S. Agostini).
No sentido
de satisfazer aos desejos dos fiéis que não compreendem o latim, damos aqui uma
tradução desta oração.
“Vós sois, ó
Jesus, o Cristo, meu Pai santo, meu Deus misericordioso, meu Rei infinitamente
grande; sois meu bom pastor, meu único mestre, meu auxílio cheio de bondade,
meu pão vivo, meu sacerdote eterno, meu guia para a pátria, minha verdadeira
luz, minha santa doçura, meu reto caminho, sapiência minha preclara, minha pura
simplicidade, minha paz e concórdia; sois, enfim, toda a minha salvaguarda,
minha herança preciosa, minha eterna salvação...
Ó Jesus
Cristo, amável Senhor, por que, em toda a minha vida, amei, por que desejei
outra coisa senão vós? Onde estava eu quando não pensava em vós? Ah! que, pelo
menos, a partir deste momento meu coração só deseje a vós e por vós se abrase,
Senhor Jesus! Desejos de minha alma, correi, que já bastante tardastes;
apressai-vos para o fim a que aspirais; procurai em verdade aquele
procurais. Ó Jesus anátema seja quem não vos ama.
Aquele que
não vos ama seja repleto de amarguras. Ó doce Jesus, sede o amor, as delícias,
a admiração de todo coração dignamente consagrado à vossa glória. Deus de meu
coração e minha partilha, Jesus Cristo, que em vós meu coração desfaleça, e
sede vós mesmo a minha vida. Acenda-se em minha alma a brasa ardente de vosso
amor e se converta num incêndio todo divino, a arder para sempre no altar de
meu coração; que inflame o âmago de minha alma; para que no dia de minha morte
eu apareça diante de vós inteiramente consumido em vosso amor... Amém”.
Quis
transcrever no original esta oração admirável de Santo Agostinho para que assim
a possam recitar as pessoas que não entendem latim. Recitemo-la todos os dias
para pedir o amor de Jesus, que procuramos por intermédio da Santíssima Virgem.
Artigo II
Pertencemos
a Jesus Cristo e a Maria na qualidade de escravos
68.
Segunda verdade. – Do que Jesus é
para nós, concluímos que não nos pertencemos, como diz o apóstolo (1Cor
6, 19), e sim a ELE, inteiramente, como seus membros e seus
escravos, comprados que fomos por um preço infinitamente caro, o preço de
seu sangue.
Antes do
batismo o demônio nos possuía como escravos, e o batismo nos transformou
em escravos de Jesus Cristo e só devemos viver, trabalhar e morrer para
produzir frutos para o homem-Deus (Rom 7, 4), glorificá-lo em nosso
corpo e fazê-lo reinar em nossa alma, pois somos sua conquista, seu povo
adquirido, sua herança. Pelo mesmo motivo o Espírito Santo nos compara24:
1º a árvores
plantadas ao longo das águas da graça, nos campos da Igreja, árvores que devem
dar seus frutos no tempo adequado;
2º aos galhos
de uma videira de que Jesus Cristo é o tronco, e que devem produzir boas uvas;
3º a um
rebanho cujo pastor é Jesus, e esse rebanho deve multiplicar-se e dar leite;
4º a uma boa
terra de que Deus é o lavrador, e na qual a semente se multiplica, rendendo
trinta, sessenta, cem vezes mais. Jesus amaldiçoou a figueira estéril (Mt
21, 19) e declarou condenado o servo inútil o que não fizera valer o seu
talento (Mt 25, 24-30).
Tudo isso
nos prova que Jesus Cristo quer receber alguns frutos de nossas mesquinhas
pessoas: quer receber nossas boas obras, porque as boas obras lhe
pertencem exclusivamente: “Creati in operibus bonis in Christo Iesu – Criados
em Jesus Cristo para boas ações” (Ef 2, 10). Essas palavras do
Espírito Santo mostram que Jesus Cristo é o único fim de todas as nossas boas
obras, e que devemos servi-lo não somente como servidores assalariados, mas
como escravos de amor. Explico-me.
69.
Há duas maneiras, aqui na terra, de alguém pertencer a outrem e de depender de
sua autoridade. São a simples servidão e a escravidão, donde a diferença que
estabelecemos entre servo e escravo.
Pela
servidão, comum entre os cristãos, um homem se põe a
serviço de outro por um certo tempo, recebendo determinada quantia ou
recompensa.
Pela
escravidão, um homem depende inteiramente de outro durante
toda a vida, e deve servir a seu senhor, sem esperar salário nem recompensa
alguma, como um dos animais sobre que o dono tem direito de vida e morte.
70.
Há três espécies de escravidão25: por natureza, por
constrangimento e por livre vontade.
Por
natureza, todas as criaturas são escravas de Deus: “Domini est terra et
plenitudo eius” (Sl 23, 1). Os demônios e os réprobos são escravos por
constrangimento; e os justos e os santos o são por livre e espontânea vontade.
A escravidão
voluntária é a mais perfeita, a mais gloriosa aos olhos de Deus, que olha o
coração (1Rs 16, 7), que pede o coração
(Prov 23, 26) e que é chamado o Deus do coração (Sl 72, 26) ou da
vontade amorosa, porque, por esta escravidão, escolhe-se, sobre todas as
coisas, a Deus e seu serviço, ainda quando não o obriga a natureza.
25)
Cf. S. Agostinho, “Expositio cantici Magnificat” (circa médium). S. Tomás, Summa Theol. 3, q. 48, ª 4,
corp. et resp. ad 1.
71.
A diferença entre um servo e um escravo é total:
1º Um servo não
dá a seu patrão tudo o que é, tudo o que possui ou pode adquirir por outrem ou
por si mesmo; mas um escravo se dá integralmente a seu senhor, com tudo o que
possui ou possa adquirir, sem nenhuma exceção.
2º O servo
exige salário pelos serviços que presta a seu patrão; o escravo, porém, nada
pode exigir, seja qual for a assiduidade, a habilidade, a força que empregue no
trabalho.
3º O servo
pode deixar o patrão quando quiser, ou ao menos quando expirar o tempo de
serviço, mas o escravo não tem esse direito.
4º O patrão
não tem sobre o servo direito algum de vida e de morte, de modo que, se o
matasse como mata um se seus animais de carga, cometeria um homicídio; mas,
pelas leis, o senhor tem sobre o escravo o poder de vida e morte26; de modo que
pode vendê-lo a quem o quiser ou matá-lo, como, sem comparação, o faria a seu
cavalo.
26)
A lei natural, a lei mosaica e as leis modernas não reconhecem tal direito, a
não ser por um mandato especial do soberano Senhor da vida e da morte. O
bem-aventurado se coloca aqui simplesmente do ponto de vista do fato, conforme
as leis civis dos países em que vigorava a escravidão (cf. Secret de Marie, p.
34). Abstraindo da moralidade do ato, seu fito é mostrar, por um exemplo, a
total dependência de que fala.
5º O servo,
enfim, só por algum tempo fica a serviço de um patrão, enquanto o escravo o é
para sempre.
72.
Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e dependência
completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais absolutamente nos faça
pertencer a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária,
conforme o exemplo do próprio Jesus Cristo, que, por nosso amor, tomou a
forma de escravo: “Formam servi accipiens” (Filip 2, 7), e da Santíssima
Virgem, que se declarou a escrava do Senhor (Lc 1, 38).
O apóstolo
honra-se várias vezes em suas epístolas com o título de “servus Christi”27. A
Sagrada Escritura chama muitas vezes os cristãos de “servi Christi”, e esta
palavras “servus”, conforme a observação acertada de um grande homem28,
significava, outrora, apenas escravo, pois não existiam servos como os de hoje,
e os ricos só eram servidos por escravos ou libertos. E para que não haja a
menor dúvida de que somos escravos de Jesus Cristo, o Concílio de Trento usa a
expressão inequívoca “mancipia Christi” e no-lo aplica: escravos de Jesus
Cristo29. Isto posto:
27)
Cf. Rom 1, 1; Gal 1, 10; Filip 1, 1; Tito 1, 1.
28)
Henri-Marie Boudon, arcediago d’Evreux, em seu livro: “La sainte esclavage de
l’admirable Mère de Dieu’, cap. II.
29)
Catec. Rom., parte I, cap. 3: De secundo Symboli articulo (in fine).
73.
Digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos
mercenários, mas como escravos amorosos, que, por efeito de um grande
amor, se dedicam a servi-lo como escravos, pela honra exclusiva de lhe
pertencer. Antes do batismo, éramos escravos do demônio; o batismo nos
fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam
escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.
74.
O que digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o também da Virgem Maria,
pois Jesus Cristo, escolhendo-a para sua companheira inseparável na vida, na
morte, na glória, em seu poder no céu e na terra, deu-lhe pela graça,
relativamente à sua majestade, os mesmos direitos e privilégios que ele possui
por natureza. “Quidquid Deo convenit per naturam, Mariae convenit per
gratiam... – Tudo que convém a Deus pela natureza, convém a Maria pela
graça”, dizem os santos. Assim, conforme este ensinamento, pois que
ambos têm a mesma vontade e o mesmo poder, têm também os mesmos súditos, servos
e escravos30.
30)
Oportebat... Dei Matrem ea quae Filii essent possidere (São João Damasc.,
Sermo 2 in Dormitione B. M.).
75.
Podemos, portanto, seguindo a opinião dos santos e de muitos doutos, dizer-nos
e fazer-nos escravos da Santíssima Virgem, para deste modo nos tornarmos mais
perfeitamente escravos de Jesus Cristo. 29 A Santíssima Virgem é
o meio de que Nosso Senhor se serviu para vir até nós; e é o meio de que nos
devemos servir para ir a Ele30.
Bem
diferente é Ela das outras criaturas, as quais, se a elas nos apegarmos,
poderão antes afastar-nos que aproximar-nos de Deus. A mais forte
inclinação de Maria é unir-nos a Jesus Cristo, seu divino Filho; e a mais forte
inclinação do Filho é que vamos a ele por meio de sua Mãe Santíssima. E
isto é para ele tanta honra e prazer, como seria para um rei honra e prazer, se
alguém, para tornar-se mais perfeitamente seu escravo, se fizesse escravo da
rainha. Eis por que os Santos Padres, e São Boaventura com eles, dizem que a
Santíssima Virgem é o caminho para chegar a Nosso Senhor: “Via veniendi
ad Christum est appropinquare ad illam”31.
29) Ita
serviam Matri tuae, ut ex hoc ipse me probes servisse tibi (S. Ildefonso: de
virginitate perpetua B. M., cap. XII).
30)
Per ipsam Deus descendit ad terras, ut per ipsam homines ascendere mereantur ad
caelos (S. Agostinho – Sermo 113 in Nativit. Domini). Ver também S. Boaventura:
Expositio in Lc, cap. I, n. 38. Pio X, Encíclica “Ad diem illum”.
31)
Psalterium maius B. M., Sl 117.
76.
Além disso, se a Virgem Santíssima, como já disse (v. nº 38), é a rainha
e soberana do céu e da terra – “Imperio Dei omnia subiciuntur et
Deus”32 , dizem Santo Anselmo, São Bernardo, São Boaventura – não possui Ela
tantos súditos e escravos quantas criaturas existem?33 Não é razoável que,
entre tantos escravos por constrangimento, haja alguns por amor, que de
boa vontade e na qualidade de escravos, escolham Maria para sua soberana?
Pois então
os homens e os demônios terão seus escravos voluntários e Maria não há de
tê-los? Seria desonra para um rei se a rainha, sua companheira, não possuísse
escravos sobre os quais tivesse direito de vida e morte34, pois a honra e o
poder do rei são a honra e o poder da rainha; e pode-se acreditar que Nosso
Senhor, o melhor de todos os filhos, que deu a sua Mãe Santíssima parte de todo
o seu poder, considere um mal ter Ela escravos?35 Terá Ele menos
respeito e amor a sua Mãe do que teve Assuero a Éster e Salomão a betsabé? Quem
ousaria dizê-lo ou pensá-lo sequer?
32)
“Ao poder de Deus tudo é submisso, até a Virgem; ao poder da Virgem tudo é
submisso, até Deus”.
33)
“Res quippe omnes conditas Filius Matri mancipavit”. S. João Damasceno. Sermo 2
in Dormitione B. M. – São Boaventura: Ancilla Dominae Mariae est quaelibet
anima Fidelis, imo etiam Ecclesia universalis (Speculum B. M. M., lect. III §
5).
34)
V. nota ao n. 71.
35)
Christianiorum memento, qui servi tui sunt. São Germano de Constatinopla: Orat.
hist. In Dormitione Deiparae.
77.
Mas onde me leva minha pena? Por que me detenho aqui a provar uma coisa tão
evidente? Se alguém recusa confessar-se escravo de Maria, que importa? Que se
faça e diga escravo de Jesus Cristo. É o mesmo que ser escravo da
Santíssima Virgem, pois Jesus é o fruto e a glória de Maria. E isto se
faz perfeitamente pela devoção de que falaremos a seguir36.
36)
Para explicação da doutrina exposta neste artigo II, ver: A. Lhomeau: “A vida
espiritual do B. L. M. Grignion de Montfort”, 1ª parte, cap. IV.
Artigo III
Devemos
despojar-nos do que há de mau em nós
78.
Terceira verdade. – Nossas melhores ações são ordinariamente manchadas
e corrompidas pelo fundo de maldade que há em nós.
Quando se
despeja água limpa e clara em uma vasilha suja, que cheira mal, ou quando se
põe vinho em uma pipa cujo interior está azedado por outro vinho que aí antes
se depositara, a água límpida e o vinho bom adquirem facilmente o mau cheiro e
o azedume dos recipientes. Do mesmo modo, quando Deus põe no vaso de nossa
alma, corrompido pelo pecado original e pelo pecado atual, suas graças e
orvalhos celestiais ou o vinho delicioso de seu amor, estes dons divinos ficam
ordinariamente estragados ou manchados pelo mau germe e mau fundo que o pecado
deixou em nós; nossas ações, até as mais sublimes virtudes, disto se ressentem.
É, portanto,
de grande importância, para adquirir a perfeição, que só se consegue pela
união com Jesus Cristo, despojar-nos de tudo que de mau existe em nós. Do
contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e odeia infinitamente a menor
mancha na alma, nos repelirá e de modo algum se unirá a nós.
79. Para
despojar-nos de nós mesmos, é preciso conhecer primeiramente
e bem, pela luz do Espírito Santo, nosso fundo de maldade, nossa
incapacidade para todo bem, nossa fraqueza em todas as coisas, nossa
inconstância em todo tempo, nossa indignidade de toda graça e nossa iniqüidade
em todo lugar. O pecado de nossos primeiros pais nos estragou completamente,
nos azedou, inchou e corrompeu, como o fermento azeda, incha e corrompe a massa
em que é posto. Os pecados atuais que cometemos, sejam mortais ou
veniais, perdoados que estejam, aumentam em nós a concupiscência, a fraqueza, a
inconstância e a corrupção, deixando maus traços em nossa alma.
Nosso corpo
é tão corrompido, que o Espírito Santo (Rom 6, 6; Sl 50, 7) o
chama corpo do pecado, concebido no pecado, nutrido no pecado, e só apto para o
pecado, corpo sujeito a mil e mil males, que se corrompe sempre mais
cada dia, e que só engendra a doença, os vermes, a corrupção.
Nossa alma,
unida ao corpo, tornou-se tão carnal, que é chamada carne: “Toda a carne
tinha corrompido o seu caminho” (Gn 6, 12). Toda a nossa herança
é orgulho e cegueira no espírito, endurecimento no coração, fraqueza e
inconstância na alma, concupiscência, paixões revoltadas e doenças no corpo.
Somos,
naturalmente, mais orgulhosos que os pavões, mais apegados à terra que os
sapos, mais feios que os bodes, mais invejosos que as serpentes, mais glutões
que os porcos, mais coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as
tartarugas; mais fracos que os caniços, e mais inconstantes do que um
catavento. Tudo que temos em nosso íntimo é nada e pecado, e só merecemos a ira
de Deus e o inferno eterno.37
37) S. Luís
Maria fala de nosso nada e de nossa impotência na ordem sobrenatural, sem o
socorro da graça (v. com efeito, mais adiante o n. 83: Nosso íntimo..., tão
corrompido, se nós apoiamos em nossos próprios trabalhos... para chegar a
Deus...).
80. Depois
disto, por que admirar-se de ter Nosso Senhor dito que quem quisesse
segui-lo devia renunciar a si mesmo e odiar a própria alma; que aquele que
amasse sua alma a perderia e quem a odiasse se salvaria? (Jo 12, 25). A
Sabedoria infinita, que não dá ordens sem motivo, só ordena que nos odiemos
porque somos grandemente dignos de ódio: só Deus é digno de amor,
enquanto nada há mais digno de ódio do que nós.
81. Em segundo lugar, para despojar-nos de nós mesmos, é
preciso que todos os dias morramos para nós, isto é, importa renunciarmos às
operações das faculdades da alma e dos sentidos do corpo, precisamos ver como
se não víssemos, ouvir como se não ouvíssemos, servir-nos das coisas deste
mundo como se não o fizéssemos (cf. 1Cor 7, 29-31), o que São Paulo
chama morrer todos os dias: “Quotidie morior” (1Cor 15, 31). “Se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só, e não produz fruto
apreciável: Nizi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit,
ipsum solum manet” (Jo 12, 24-25).
Se não
morrermos a nós mesmos, e se as mais santas devoções não nos levarem a esta
morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha, nossas devoções
serão inúteis, todas as nossas obras de justiça ficarão manchadas por nosso
amor-próprio e nossa própria vontade, e Deus abominará os maiores sacrifícios e
as melhores ações que possamos fazer. Na hora da nossa morte, teremos as mãos
vazias de virtudes e méritos, e não brilhará em nós a menor centelha do puro
amor, que só é comunicado às almas mortas a si mesmas, almas cuja vida está
oculta com Jesus Cristo em Deus (Col 3, 3).
82. Em terceiro lugar, é preciso escolher
entre todas as devoções à Santíssima Virgem, a que nos leva com mais certeza a
este aniquilamento do próprio eu. Esta será a devoção melhor e
mais santificante, pois é mister reconhecer que nem tudo que luz é ouro, nem
tudo que é doce é mel, e nem tudo que é fácil de fazer e praticar é o mais
santificante. Do mesmo modo que a natureza tem segredos para fazer em
pouco tempo, sem muitos gastos e com facilidade, certas operações naturais, há
segredos, na ordem da graça, pelos quais se fazem, em pouco tempo, com doçura e
facilidade, operações sobrenaturais, como despojar-nos de nós mesmos,
encher-nos de Deus, e tornar-nos perfeitos.
A prática
que quero revelar é um desses segredos da graça, desconhecido da maior parte
dos cristãos, conhecidos de poucos devotos, praticado e apreciado por um número
bem diminuto. Antes de abordar esta prática, apresento uma quarta verdade que é
conseqüência da terceira.
Artigo IV
Temos
necessidade de um medianeiro junto do próprio medianeiro que é Jesus Cristo
83. Quarta verdade. – É muito mais perfeito,
porque é mais humilde, tomar um medianeiro para nos aproximarmos de Deus.
Se nos apoiarmos sobre nossos próprios trabalhos, habilidade e preparações,
para chegar a Deus e agradar-lhe, é certo que todas as nossas obras de justiça
ficarão manchadas e peso insignificante terão junto de Deus, para movê-lo a
unir-se a nós e nos atender, pois, como acabo de demonstrar, nosso íntimo
é extremamente corrupto.
E não foi
sem razão que ele nos deu medianeiros junto de sua majestade. Viu nossa
iniqüidade e incapacidade, apiedou-se de nós, e, para dar-nos acesso às suas
misericórdias, proporcionou-nos intercessores poderosos junto de sua grandeza;
de sorte que negligenciar esses medianeiros e aproximar-se diretamente de sua
santidade sem outra recomendação é faltar ao respeito a um Deus tão alto e tão
santo; é menosprezar este Rei dos reis, como não se faria a um rei ou príncipe
da terra, do qual ninguém se aproximaria sem a recomendação de um amigo.
84. Nosso
Senhor é nosso advogado e medianeiro de redenção junto de Deus Pai; é
por intermédio Dele que devemos rezar com toda a Igreja triunfante e militante;
é por intermédio Dele que obtemos acesso junto de sua majestade, em cuja
presença não devemos jamais aparecer, a não ser amparados e revestidos dos
méritos de Jesus Cristo, como Jacob revestindo-se da pele de cabrito para
receber a bênção de seu pai Isaac.
85. Mas
temos necessidade de um medianeiro junto do próprio medianeiro? Será a
nossa pureza suficiente para que nos permita unir-nos diretamente a ele, e por
nós mesmos? Não é ele Deus, em tudo igual ao Pai, e, por conseguinte, o Santo
dos santos, digno de tanto respeito como seu Pai? Se ele, por sua caridade
infinita, se constituiu nosso penhor e medianeiro junto de Deus seu Pai, para
aplacá-lo e pagar-lhe o que lhe devíamos, quer isto dizer que lhe devemos menos
respeito e tomar por sua majestade e santidade?
Digamos,
pois, ousadamente, com São Bernardo38, que temos necessidade de um
medianeiro junto do Medianeiro por excelência, e que Maria Santíssima é a única
capaz de exercer esta função admirável. Por ela Jesus Cristo veio
a nós, e por ela devemos ir a ele.
Se receamos
ir diretamente a Jesus Cristo Deus, em vista da sua grandeza infinita, ou por
causa de nossa baixeza, ou, ainda, devido aos nossos pecados, imploremos
afoitamente o auxílio e intercessão de Maria nossa Mãe; ela é boa e terna; nela
não há severidade nem repulsa, tudo nela é sublime e brilhante contemplando-a,
vemos nossa pura natureza. Ela não é o sol, que, pela força de seus raios, nos
poderia deslumbrar em nossa fraqueza, mas é bela e suave como a lua
(Cant 6, 9), que recebe a luz do sol e a tempera para que possamos suportá-la.
É tão
caridosa que a ninguém repele, que implore sua intercessão, ainda que seja um
pecador; pois, como dizem os santos, nunca se ouviu dizer, desde que o mundo é
mundo, que alguém que tenha recorrido à Santíssima Virgem, com confiança e
perseverança, tenha sido desamparado ou repelido.39 Ela
é tão poderosa que jamais foi desatendida em seus pedidos; basta-lhe
apresentar-se diante de seu Filho para pedir-lhe algo, e ele só ouve o pedido
para logo conceder-lhe o que ela pede; é sempre amorosamente vencido pelo
seios, pelas entranhas e pelas preces de sua querida Mãe.
38) Sermo in Domin. inf. oct. Assumptionis, n. 2: “Opus est
enim mediatore ad Mediatorem istum, nec alter nobis utilior quam Maria”. Todo
este parágrafo é tirado deste sermão de São Bernardo.
39) Termina
aqui a citação de S. Bernardo. A frase seguinte é tirada de S. Boaventura:
Sermo 2 in B. V. M.
86. Tudo isto é
tirado de São Bernardo e de São Boaventura. De acordo com suas palavras, temos
três degraus a subir para chegar a Deus: o primeiro, mais próximo de nós
e mais conforme à nossa capacidade, é Maria; o segundo é Jesus Cristo; e o
terceiro é Deus Pai.40 Para ir a Jesus é preciso ir a Maria, pois
ela é a medianeira de intercessão. Para chegar ao Pai eterno é preciso ir a
Jesus, que é nosso medianeiro de redenção. Ora, pela devoção que
preconizo, mais adiante, é esta a ordem perfeitamente observada.
40) Cf. S.
Boaventura: Per Mariam ad Christum accedimos, et per Christum gratium Spiritus
Sancti invenimus (Speculum B. V., lect. VI, § 2). – V. também Leão XIII, Encíclica
“Octobri mense”, 22-9-1891.
Artigo V
É muito difícil para
nós conservar as graças e tesouros recebidos de Deus
87.
Quinta verdade. – É extremamente difícil, devido à nossa fraqueza
e fragilidade, conservarmos em nós as graças e os tesouros que recebemos de
Deus:
1º Porque
este tesouro, mais valioso que o céu e a terra, nós os guardamos em vasos
frágeis: “Habemus thesaurum istum in vasis fictilibus”
(2Cor 4, 7); em um corpo corruptível, em uma alma fraca e inconstante que
um nada perturba e abate.
88. 2º porque
os demônios, que são ladrões finórios, buscam surpreender-nos de improviso para
nos roubar e despojar; espreitam dia e noite o momento favorável a seu
desígnio; andam incessantemente ao redor de nós, prontos a devorar-nos
(cf 1Ped 5, 8) e, pelo pecado, arrebatar-nos, num momento, tudo que em longos
anos conseguimos alcançar de graças e méritos. E tanto mais devemos temer esta
desgraça, sabendo quão incomparável é sua malícia, sua experiência, suas
astúcias e seu número. Pessoas tem havido muito mais cheias de graças do
que nós, mais ricas em virtudes, mais experientes, mais elevadas em santidade,
que foram surpreendidas, roubadas, saqueadas lamentavelmente.
Ah! quantos
cedros do Líbano, quantas estrelas do firmamento se têm visto cair
miseravelmente, perdendo em pouco tempo toda a sua altivez e claridade. A que
atribuir tão estranha mudança? Não foi falta de graça, pois a graça não
falta a ninguém; foi falta de humildade. Essas pessoas
acreditavam-se mais fortes e suficientes do que o eram na realidade;
julgavam-se capazes de guardar seus tesouros; fiaram-se e apoiaram-se em si
próprias; creram sua casa bastante segura e bem fortes os seus cofres para
guardar o precioso tesouro da graça, e, devido a essa segurança imperceptível
que tinham em si (conquanto lhes parecesse que se apoiavam na graça de
Deus), é que o justíssimo Senhor, abandonando-as às próprias forças,
permitiu que fossem roubadas.
Ah! se
tivessem conhecido a devoção admirável que vou expor, em seguida, teriam
confiado seu tesouro à Virgem poderosa e fiel, que o teria guardado
como seu próprio bem, fazendo mesmo, disso, um dever de justiça.
89. 3º É
difícil perseverar na justiça, por causa da corrupção do mundo. O mundo
está, atualmente, tão corrompido, que é quase necessário que os corações
religiosos sejam manchados, se não pela lama, ao menos pela poeira dessa
corrupção; de modo que se pode considerar um milagre o fato de uma pessoa
manter-se firme no meio dessa torrente impetuosa sem que o turbilhão a arraste;
no meio desse mar tempestuoso sem que o furor das ondas a submerja ou a pilhem
os piratas e corsários no meio desse ar empestado sem que os miasmas a
contaminem. É a Virgem, a única fiel, na qual a serpente não teve parte
jamais, que faz este milagre em favor daqueles e daquelas que a servem da mais
bela maneira.
Capítulo III
Escolha da verdadeira
devoção à Santíssima Virgem
90. Conhecidas
estas cinco verdades, é preciso, mais do que nunca, fazer agora uma boa escolha
da verdadeira devoção à Virgem Santíssima, pois, como jamais, pululam
falsas devoções a Maria Santíssima, as quais passam facilmente por devoções
verdadeiras. O demônio, como um moedeiro falso e um enganador fino e
experimentado, tem já enganado e perdido inúmeras almas, inculcando
uma falsa devoção à Santíssima Virgem, e todos os dias vale-se de sua
experiência diabólica para lançar outros mais à eterna condenação,
divertindo-as e acalentando-as no pecado, sob o pretexto de algumas
orações mal recitadas e de algumas práticas exteriores que lhes inspira.
Como um
moedeiro falso só falsifica ordinariamente moedas de ouro e prata, raras vezes
imitando outros metais, que não compensam o trabalho, do mesmo modo o espírito
maligno não se detém em falsificar outras devoções que não sejam as de Jesus e
de Maria, à santa comunhão, e à Virgem Santíssima, porque são estas como ouro e
a prata entre os metais.
91. É,
portanto, de grande importância conhecer primeiramente as falsas devoções à
Santíssima Virgem, para evitá-las, e a verdadeira, para abraçá-la;
segundo, entre tantas práticas diferentes da verdadeira devoção à Virgem
Santíssima, distinguir a mais perfeita, a mais agradável a Maria Santíssima, a
que mais glória dá a Deus, a mais santificante para nós, para a esta nos
apegarmos.
Artigo I
Os sinais da falsa e
da verdadeira devoção à Santíssima Virgem
§ I. Os falsos devotos
e as falsas devoções à Santíssima Virgem.
92. Conheço
sete espécies de falsos devotos e falsas devoções à Santíssima Virgem:
1º os devotos
críticos,
2º os devotos
escrupulosos,
3º os devotos
exteriores,
4º os devotos
presunçosos,
5º os devotos
inconstantes,
6º os devotos
hipócritas,
7º os devotos
interesseiros.
1º
Os devotos críticos
93. Os devotos
críticos são, em geral, sábios orgulhosos, espíritos fortes e presumidos, que
têm no fundo uma certa devoção à Santíssima Virgem, mas que vivem criticando as
práticas de devoção que a gente simples tributa de boa-fé e santamente a esta
boa Mãe, pelo fato de estas devoções não agradarem à sua culta fantasia. Põem
em dúvida todos os milagres e histórias narrados por autores dignos de fé, ou
inseridos em crônicas de ordens religiosas, atestando as misericórdias e o
poder da Santíssima Virgem.
Repugna-lhes
ver pessoas simples e humildes ajoelhadas diante de um altar ou de uma imagem
da Virgem, às vezes no recanto de uma rua, rezando a Deus; chegam a acusá-las
de idolatria, como se estivesse adorando a pedra ou a madeira. Dizem que, de
sua parte, não apreciam essas devoções exteriores e que seu espírito não é tão
fraco que vá dar fé a tantos contos e historietas que se atribuem à Santíssima
Virgem. Quando alguém lhes repete os louvores admiráveis que os Santos Padres
dão à Santíssima Virgem, respondem que são flores de retórica, ou exagero, que
aqueles escritores eram oradores; ou dão, então, uma explicação má daquelas
palavras.41
41) Não se
pense que S. Luís Maria exagere neste ponto. A época em que escrevia era a
desses devotos críticos, que procuravam propagar entre os fiéis escritos
venenosos, como o panfleto de Windenfelt, intitulado: “Avisos salutares da B.
V. Maria a seus devotos indiscretos” (V. Lhomeau: “Vida espiritual”).
Esta espécie
de falsos devotos e orgulhosos e mundanos é muito para temer e eles
causam um mal infinito à devoção à Santíssima Virgem, dela afastando
eficazmente o povo, sob pretexto de destruir-lhes os abusos.
2º
Os devotos escrupulosos
94. Os devotos
escrupulosos são aqueles que receiam desonrar o Filho, honrando a Mãe, e
rebaixá-lo se a exaltarem demais. Não podem suportar que se repitam à
Santíssima Virgem aqueles louvores justíssimos que lhe teceram os Santos
Padres; não suportam sem desgosto que a multidão ajoelhada aos pés de Maria
seja maior que ante o altar do Santíssimo Sacramento, como se fossem
antagônicos, e como se os que rezam à Santíssima Virgem não rezassem a
Jesus Cristo por meio dela. Não querem que se fale tão freqüentemente
da Santíssima Virgem, nem que se recorra tantas vezes a ela.
Algumas
frases eles as repetem a cada momento: Para que tantos terços, tantas
confrarias e devoções exteriores à Santíssima Virgem? Vai nisso muito de
ignorância! É fazer da religião uma palhaçada. Falai-me, sim, dos que são
devotos de Jesus Cristo (e eles o nomeiam, muitas vezes, sem se descobrir,
digo-o sem parêntesis): cumpre recorrer a Jesus Cristo, pois é ele o nosso
único medianeiro; é preciso pregar Jesus Cristo, isto sim que é sólido!
Em certo
sentido é verdade o que eles dizem. Mas, pela aplicação que lhe dão, é
bem perigoso e constitui uma cilada sutil do maligno, sob o pretexto de um bem
muito maior, pois nunca se há de honrar mais a Jesus Cristo, do que honrando a
Santíssima Virgem, desde que a honra que se presta a Maria não tem outro fim
que honrar mais perfeitamente a Jesus Cristo, e que só se vai a ela como ao
caminho para atingir o termo que é Jesus Cristo.
95. A santa
Igreja, como o Espírito Santo, bendiz primeiro a Santíssima Virgem e depois
Jesus Cristo: “benedicta tu in mulieribus et benedictus fructus ventris tui
Iesus”. Não porque a Santíssima Virgem seja mais ou igual a Jesus Cristo:
seria uma heresia intolerável, mas porque, para mais perfeitamente bendizer
Jesus Cristo, cumpre bendizer antes a Maria.
Digamos, portanto,
com todos os verdadeiros devotos de Maria, contra seus falsos e escrupulosos
devotos: Ó Maria, bendita sois vós entre todas as mulheres e bendito é o
fruto do vosso ventre, Jesus!
3º
Os devotos exteriores
96. Devotos
exteriores são as pessoas que fazem consistir toda a devoção à Santíssima
Virgem em práticas exteriores; que só tomam interesse pela exterioridade da
devoção à Santíssima Virgem, por não terem espírito interior; que
recitarão às pressas uma enfiada de terços, ouvirão, sem atenção, uma
infinidade de missas, acompanharão as procissões sem devoção, farão parte de
todas as confrarias sem emendar de vida, sem violentar suas paixões, sem imitar
as virtudes desta Virgem Santíssima.
Amam apenas
o que há de sensível na devoção, sem interesse pela parte sólida. Se suas
práticas não lhes afetam a sensibilidade, acham que não há nada mais a fazer,
ficam desorientados, ou fazem tudo desordenadamente. O mundo está cheio dessa
espécie de devotos exteriores e não há gente que mais critique as pessoas
de oração que se dedicam à devoção interior sem desprezar o exterior de
modéstia, que acompanha sempre a verdadeira devoção.
4º
Os devotos presunçosos
97. Os devotos
presunçosos são pecadores abandonados a suas paixões, ou amantes do mundo, que,
sob o belo nome de cristãos e devotos da Santíssima Virgem, escondem ou o
orgulho, ou a avareza, ou a impureza, ou a embriaguez, ou a cólera, ou a
blasfêmia, ou a maledicência, ou a injustiça, etc.; que dormem
placidamente em seus maus hábitos, sem violentar-se muito para se corrigir,
alegando que são devotos da Virgem; que prometem a si mesmos que Deus
lhes perdoará, que não hão de morrer sem confissão, e não serão condenados
porque recitam seu terço, jejuam aos sábados, pertencem à confraria do santo
Rosário ou do Escapulário, ou a alguma congregação; porque trazem consigo o
pequeno hábito ou a cadeiazinha da Santíssima Virgem, etc.
Quando
alguém lhes diz que sua devoção não é mais do que ilusão e uma presunção
perniciosa capaz de perdê-los, recusam-se a crer; dizem que Deus é bom e
misericordioso e que não nos criou para nos condenar; que não há homem que não
peque; que eles não hão de morrer sem confissão; que um bom peccavi à
hora da morte basta; de mais a mais que eles são devotos da Santíssima Virgem,
cujo escapulário usam; e em cuja honra dizem, todos os dias,
irrepreensivelmente e sem vaidade (isto é, com fidelidade e humildade)
sete Pai-Nosso e sete Ave-Marias; que recitam mesmo, uma vez ou outra, o terço
e o ofício da Santíssima Virgem; que jejuam, etc.
Para
confirmar o que dizem e mais aumentar a própria cegueira, relembram umas
histórias que leram ou ouviram, verdadeiras ou falsas não importa, em que se
afirma que pessoas mortas em pecado mortal, sem confissão, só pelo fato de que
em vida tinham feito algumas orações ou práticas de devoção à Santíssima Virgem
ressuscitaram para se confessar, ou sua alma permaneceu milagrosamente no corpo
até se confessarem, ou, ainda, que, pela misericórdia da Santíssima Virgem, obtiveram
de Deus, na hora da morte, a contrição e o perdão de seus pecados, e se
salvaram. Eles esperam, portanto, a mesma coisa.
98. Não
há, no cristianismo, coisa tão condenável como essa presunção diabólica;
pois será possível dizer de verdade que se ama e honra a Santíssima Virgem,
quando, pelos pecados, se fere, se traspassa, se crucifica e ultraja
impiedosamente a Jesus Cristo, seu Filho? Se Maria considerasse uma lei salvar
essa espécie de gente, ela autorizaria um crime, ajudaria a crucificar e injuriar
seu próprio Filho. Que o ousaria pensar?
99. Digo
que abusar assim da devoção à Santíssima Virgem, a mais santa e mais sólida
devoção a Nosso Senhor e ao Santíssimo Sacramento, é cometer um horrível
sacrilégio, o maior e o menos perdoável, depois do sacrilégio de uma comunhão
indigna.
Confesso
que, para ser alguém verdadeiramente devoto da Santíssima Virgem, não é
absolutamente necessário ser santo ao ponto de evitar todo pecado, conquanto
seja este o ideal; mas é preciso ao menos (note-se bem o que vou
dizer):
Em primeiro
lugar, estar com a resolução sincera de evitar ao menos todo pecado
mortal, que ofende tanto a Mãe como o Filho.
Segundo, fazer
violência a si mesmo para evitar o pecado.
Terceiro, filiar-se
a confrarias, rezar o terço, o santo rosário ou outras orações, jejuar aos
sábados, etc.
100. Isto é
maravilhosamente útil à conversão de um pecador, mesmo empedernido; e se meu
leitor estiver nestas condições, como que tenha já um pé no abismo, eu lho
aconselho, contanto, porém, que só pratique estas boas obras na intenção de,
pela intercessão da Santíssima Virgem, obter de Deus a graça da contrição e do
perdão dos pecados, e de vencer seus maus hábitos, e não para continuar
calmamente no estado de pecado, a despeito dos remorsos de consciência, do
exemplo de Jesus Cristo e dos santos, e das máximas do santo Evangelho.
5º
Os devotos inconstantes
101. Devotos
inconstantes são aqueles que são devotos da Santíssima Virgem periodicamente,
por intervalos e por capricho: hoje são fervorosos, amanhã tíbios; agora
mostram-se prontos a tudo empreender em serviço de Maria e logo após já não
parecem os mesmos. Abraçam logo todas as devoções à Santíssima Virgem,
ingressam em todas as suas confrarias, e em pouco tempo já nem observam as
regras com fidelidade; mudam como a lua42, e Maria os esmaga sob seus pés como
faz ao crescente, pois eles são volúveis e indignos de ser contados entre os
servidores desta Virgem fiel, que têm a fidelidade e a constância por herança. Vale
mais não se sobrecarregar de tantas orações e práticas de devoção, e fazer
poucas com amor e fidelidade, a despeito do mundo, do demônio e da carne.
42) A lua,
por suas variações, é tomada freqüentemente pelos antigos autores místicos como
o símbolo das mudanças da alma inconstante. – Cf. Ecli 27, 27, 12. São
Bernardo: “Sermo super Signum Magnum”, n.3.
6º
Os devotos hipócritas
102. Há também
falsos devotos da Santíssima Virgem, os devotos hipócritas, que cobrem seus
pecados e maus hábitos com o manto desta Virgem fiel, a fim de passarem aos
olhos do mundo por aquilo que não são.
7º
Os devotos interesseiros
103. Há ainda os
devotos interesseiros, que só recorrem à Santíssima Virgem para ganhar algum
processo, para evitar algum perigo, para se curar de alguma doença ou em
qualquer necessidade desse gênero, sem o que a esqueceriam; uns e outros são
falsos devotos que não têm aceitação diante de Deus e de sua Mãe Santíssima.
104. Cuidemos,
portanto, de não pertencer ao número dos devotos críticos que em coisa alguma
crêem e de tudo criticam; dos devotos escrupulosos que receiam ser
demasiadamente devotos da Santíssima Virgem, por respeito a Jesus Cristo; dos
devotos exteriores que fazem consistir toda a sua devoção em práticas
exteriores; dos devotos presunçosos, que, sob o pretexto de sua falsa devoção
continuam marasmados em seus pecados; dos devotos inconstantes que, por
leviandade, variam suas práticas de devoção, ou as abandonam completamente à
menor tentação; dos devotos hipócritas que se metem em confrarias e ostentam as
insígnias da Santíssima Virgem a fim de passar por bons; e, enfim, dos devotos
interesseiros, que só recorrem à Santíssima Virgem para se livrarem dos males
do corpo ou obter bens temporais.
§ II. A verdadeira
devoção à Santíssima Virgem.
105. Depois de
descobrir e condenar as falsas devoções à Santíssima Virgem, cumpre estabelecer
em poucas palavras a devoção verdadeira, que é:
1º interior,
2º terna,
3º santa,
4º
constante,
5º
desinteressada.
1º
A verdadeira devoção é interior
106. Antes
de tudo, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é interior, isto é, parte do
espírito e do coração. Vem da estima em que se tem a Santíssima Virgem.
Da alta idéia que se formou de suas grandezas, e do amor que se lhe consagra.
2º
A verdadeira devoção é terna
107. Em
segundo lugar é terna, quer dizer cheia de confiança na Santíssima Virgem, da
confiança de um filho em sua mãe. Impele uma alma a recorrer a ela em
todas as necessidades do corpo e do espírito, com extremos de simplicidade, de
confiança e de ternura; ela implora o auxílio de sua boa Mãe em todo o
tempo, em todo lugar, em todas as coisas: em suas dúvidas, para ser
esclarecida; em seus erros, para se corrigir; nas tentações, para ser
sustentada; em suas fraquezas, para ser fortificada; em suas quedas, para ser
levantada; em seus abatimentos, para ser encorajada; em seus escrúpulos, para
ficar livre deles; em suas cruzes, trabalhos e reveses da vida, para ser
consolada. Em todos os males do corpo e do espírito, enfim, Maria é o
refúgio, e não há receio de importunar esta boa Mãe e desagradar a Jesus
Cristo.
3º
A verdadeira devoção é santa
108. Terceiro,
a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é santa: Leva uma alma a
evitar o pecado e a imitar as virtudes da Santíssima Virgem, principalmente sua
humildade profunda, sua contínua oração, sua obediência cega, sua fé viva, sua
mortificação universal, sua pureza divina, sua caridade ardente, sua paciência heróica,
sua doçura Angélica e sua sabedoria divina. Aí estão as dez principais da
Santíssima Virgem.
4º
A verdadeira devoção é constante
109. Quarto,
verdadeira devoção à Santíssima Virgem é constante, firma uma alma no bem, e
ajuda-a a perseverar em suas práticas de devoção. Torna-a corajosa para
se opor ao mundo em suas modas e máximas, à carne, em seus aborrecimentos e
paixões, e ao demônio, em suas tentações. Assim, uma pessoa
verdadeiramente devota da Santíssima Virgem não é volúvel, nem se deixa dominar
pela melancolia, pelos escrúpulos ou pelos receios. Não quer isto dizer
que não caia ou não mude, às vezes, na sensibilidade de sua devoção; mas, se
cai, levanta-se logo, estende a mão à sua boa Mãe, e, se perde o gosto ou a
devoção sensível, não se aflige irremediavelmente, pois o justo e devoto fiel
de Maria vive da fé de Jesus e de Maria, e não nos sentimentos naturais.
5º
A verdadeira devoção é desinteressada
110. A
verdadeira devoção à Santíssima Virgem é, finalmente, desinteressada, leva a alma
a buscar não a si mesma, mas somente a Deus em sua Mãe Santíssima. O
verdadeiro devoto de Maria não serve a esta augusta Rainha por espírito de
lucro e de interesse, nem para seu bem temporal ou eterno, corporal ou
espiritual, mas unicamente porque ela merece ser servida, e Deus
exclusivamente nela; o verdadeiro devoto não ama a Maria precisamente
porque ela lhe faz ou ele espera dela algum bem, mas porque ela é amável. Só
por isto ele a ama e serve nos desgostos e na aridez, como nas doçuras e no
fervor sensível, sempre com a mesma fidelidade; ama-a nas amarguras do Calvário
como nas alegrias de Caná.
Oh! como é
agradável e precioso aos olhos de Deus e de sua Mãe Santíssima, esse devoto,
que em nada se busca nos serviços que presta à sua Rainha. Mas,
também, quão raro é encontrá-lo agora. E é com o fito de que cresça o número
desses fiéis devotos, que empunhei a pena para escrever o que tenho, com
particular fruto, ensinado em público e em particular nas minha missões,
durante anos e anos.
111. Muitas
coisas já disse sobre a Santíssima Virgem. Mais ainda tenho, entretanto, a
dizer, e infinitamente mais omitirei, seja por ignorância, incapacidade ou
falta de tempo, no desígnio que tenho de formar um verdadeiro devoto de Maria e
um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.
112. Oh! bem
empregado seria o meu esforço, se este escrito, caindo nas mãos duma alma bem
nascida, nascida de Deus e de Maria, e não do sangue, ou da vontade da
carne, nem da vontade do homem (cf. Jo 1, 13), lhe desvendasse e inspirasse,
pela graça do Espírito Santo, a excelência e o prêmio da verdadeira e sólida
devoção à Santíssima Virgem, como vou indicar.
Se eu
soubesse que meu sangue pecaminoso poderia servir para fazer entrar no coração
as verdades que escrevo em honra de minha querida Mãe e soberana Senhora, da
qual sou o último dos filhos e escravos, em lugar de tinta eu o usaria para
formar esses caracteres, na esperança que me anima de encontrar boas almas que,
por sua fidelidade à prática que ensino, compensarão minha boa Mãe e Senhora
das perdas que lhe têm causado minha ingratidão e infidelidade.
113. Sinto-me,
mais do que nunca, animado a crer e esperar em tudo que tenho profundamente
gravado no coração, e que há muitos anos peço a Deus: que mais cedo ou mais tarde
a Santíssima Virgem terá mais filhos, servidores e escravos44, como nunca
houve, e que, por este meio, Jesus Cristo, meu amado Mestre, reinará totalmente
em todos os corações.
44) Note-se
a associação destes dois termos: filho e escravo. A mesma aproximação foi feita
pelo Catecismo do Concílio de Trento (p. I, cap. 3, “De secundo symboli
articulo”, in fine).
114. Vejo, no
futuro, animais frementes, que se precipitam furiosos para dilacerar com seus
dentes diabólicos este pequeno manuscrito e aquele de quem o Espírito Santo se
serviu para escrevê-lo, ou ao menos para fazê-lo ficar envolto nas trevas e no
silêncio de uma arca, a fim de que ele não apareça. Atacarão até, e perseguirão
aqueles e aquelas que o lerem e o puserem em prática.45
Mas não
importa! tanto melhor! Esta visão me encoraja e me dá a esperança de um grande
sucesso, isto é, um esquadrão de bravos e destemidos soldados de Jesus e de
Maria, de ambos os sexos, para combater o mundo, o demônio e a natureza
corrompida, nos tempos perigosos que virão, e como ainda não houve.
“Que legit, intelligat. Qui potest capere, capiat” (Mt 24, 15; 19, 12).
45) Esta
predição realizou-se ao pé da letra. Em todo o decorrer do século XVIII, os
filhos de Montfort fora o alvo dos ataques dos jansenistas, em vista de seu
zelo por esta devoção. E o precioso manuscrito, escondido durante as
perturbações da Revolução Francesa, só foi encontrado em 1842 por um padre da
Companhia de Maria, em um caixote de livros antigos.
Artigo II
As práticas da
verdadeira devoção à Santíssima Virgem
§ I. As práticas
comuns.
115. Há muitas
práticas interiores da verdadeira devoção à Santíssima Virgem.
As
principais são, abreviadamente, as seguintes:
1. Honrá-la,
como a digna Mãe de Deus, com o culto de hiperdulia, isto é, estimá-la e
honrá-la sobre todos os outros santos, como a obra-prima da graça e a primeira
depois de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
2. Meditar
suas virtudes, seus privilégios e seus atos.
3. Contemplar
suas grandezas.
4. Fazer-lhe
atos de amor, de louvor e reconhecimento.
5. Invocá-la
cordialmente.
6. Oferecer-se
e unir-se a ela.
7. Em todas as
ações ter a intenção de agradar-lhe.
8. Começar,
continuar, e acabar todas as ações por ela, nela, com ela e para ela, a fim de
fazê-las por Jesus Cristo, em Jesus Cristo, com Jesus Cristo e para Jesus
Cristo, nosso último fim. Mais adiante explicaremos esta última prática (Ver
cap. VIII, art, II).
116. A
verdadeira devoção à Santíssima Virgem tem também muitas práticas exteriores,
das quais as principais são:
1º Alistar-se
em suas confrarias e ingressar em suas congregações;
2º ingressar
numa das ordens instituídas em sua honra;
3º publicar
seus louvores;
4º dar
esmolas, jejuar e mortificar-se o espírito e o corpo em sua honra;
5º trazer
consigo suas insígnias, como o santo rosário ou o terço, o escapulário ou a
cadeiazinha;
6º recitar com
devoção, atenção e modéstia ou o santo rosário, composto de quinze dezenas de
Ave-Maria, em honra dos quinze mistérios principais de Jesus Cristo, ou o terço
de cinco dezenas, contemplando os cinco mistérios
gozosos: anunciação, a visitação, a natividade de Jesus
Cristo, a purificação e o encontro de Jesus no templo; os cinco mistérios dolorosos: a agonia de Jesus no
Jardim das Oliveiras, sua flagelação, a coroação de espinhos, Jesus levando
cruz, e a crucificação; os cinco mistérios
gloriosos: a ressurreição de Jesus, sua ascensão, a descida do
Espírito Santo, a assunção da Santíssima Virgem em corpo e alma ao céu, e sua
coroação pelas três pessoas da Santíssima Trindade.
Pode-se
recitar também uma coroa de seis ou sete dezenas em honra dos anos que se crê a
Santíssima Virgem ter vivido na terra; ou a coroinha da Santíssima Virgem,
composta de três Pai-nosso e doze Ave-Marias, em honra de sua coroa de doze
estrelas ou privilégios; outrossim o ofício da Santíssima Virgem universalmente
conhecido e recitado pela Igreja; o pequeno saltério da Santíssima Virgem que
São Boaventura compôs em sua honra, tão terno e devoto que não se pode
recitá-lo sem enternecimento; quatorze Pai-nosso e Ave-Marias em honra de suas
quatorze alegrias; quaisquer outras orações, enfim, hinos e cânticos da Igreja,
como o “Salve Rainha”, o “Alma”, o Ave Regina caelorum”, ou o “Regina caeli”,
conforme os diferentes tempos; ou o “Ave, Maris Stella”, “O gloriosa Domina”,
etc., ou o “Magnificat”, e outras orações e hinos de que andam cheios os
devocionários;
7º cantar e
fazer cantar em sua honra cânticos espirituais;
8º fazer-lhe um
certo numero de genuflexões ou reverências, dizendo-lhe, p. ex., todas as
manhãs, sessenta ou cem vezes: “Ave, Maria, Virgo Fidelis”, para, por meio
dela, obter de Deus a fidelidade às graças durante o dia; e à noite: “Ave,
Maria, Mater Misericordiae”, para, por intermédio dela, alcançar de Deus o
perdão dos pecados cometidos durante o dia;
9º ter zelo
por suas confrarias, ornar seus altares, coroar e enfeitar suas imagens;
10º carregar
nas procissões ou fazer que se conduza sua imagem nas procissões, e trazê-la
consigo como uma arma eficaz contra o demônio;
11º mandar
fazer imagens que a representem, ou seu nome, e colocá-los nas igrejas, nas
casas, nos pórticos ou à entrada das cidades, igrejas e casas;
12º
consagrar-se a ela, de uma maneira especial e solene.
117. Há
uma quantidade de outras práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem,
que o Espírito Santo tem inspirado às almas de escol, e que são muito
santificantes. Pode-se encontrá-las mais extensamente no livro “Paraíso
aberto a Filágia”do Padre Paulo Barry, da Companhia de Jesus. Aí o autor
coligiu grande número de devoções praticadas pelos santos em honra da
Santíssima Virgem, devoções maravilhosamente úteis para santificar as almas,
desde que sejam praticadas como devem, isto é:
1º Com
reta e boa intenção de agradar só a Deus, de unir-se a Jesus Cristo como o
nosso fim último, e de edificar o próximo;
2ª com
atenção, sem distrações voluntárias;
3º com
devoção, sem precipitação nem negligência;
4º com
modéstia e compostura, em atitude respeitosa e edificante.
§ II. A prática
perfeita.
118. Depois de
ler quase todos os livros que tratam da devoção à Santíssima Virgem e de
conversar com as pessoas mais santas e instruídas destes últimos tempos,
declaro firmemente que não encontrei nem aprendi outra prática de devoção à
Santíssima Virgem semelhante a esta que vou iniciar, que exija de uma alma mais
sacrifícios a Deus, que a despoje mais completamente de seu amor-próprio, que a
conserve com mais fidelidade na graça e a graça nela, que a una com mais
perfeição e facilidade a Jesus Cristo, e, afinal, que seja mais gloriosa para
Deus, santificante para a alma e útil ao próximo.
119. O
essencial desta devoção consiste no interior que ela deve formar, e, por este
motivo, não será compreendida igualmente por todo o mundo. Alguns hão
de deter-se no que ela tem de exterior, e não passarão avante, e estes serão o
maior número; outros, em número reduzido, entrarão em seu interior, mas subirão
apenas um degrau. Quem alcançará o segundo? Quem se elevará ao terceiro? Quem,
finalmente, se identificará nesta devoção? Aquele somente a quem o Espírito de
Jesus Cristo revelar este segredo. Ele mesmo conduzirá a esse estado a
alma fiel, fazendo-a progredir de virtude em virtude, de graça em graça e de
luz em luz, para que ela chegue a transformar-se em Jesus Cristo, e atinja a
plenitude de sua idade sobre a terra e de sua glória no céu.
Capítulo IV
Da perfeita devoção à
Santíssima Virgem ou
a perfeita consagração a Jesus Cristo
a perfeita consagração a Jesus Cristo
120. A mais
perfeita devoção é aquela pela qual nos conformamos, unimos e consagramos mais
perfeitamente a Jesus Cristo, pois toda a nossa perfeição consiste em sermos
conformados, unidos e consagrados a ele. Ora, pois que Maria é, de todas as
criaturas, a mais conforme a Jesus Cristo, segue daí que, de todas as
devoções, a que mais consagra e conforma uma alma a Nosso Senhor é a devoção à
Santíssima Virgem, sua santa Mãe, e que, quanto mais uma alma se
consagrar a Maria, mais consagrada estará a Jesus Cristo.
Eis por que
a perfeita consagração a Jesus Cristo nada mais é que uma perfeita e inteira
consagração à Santíssima Virgem, e nisto consiste a devoção que eu ensino; ou,
por outra, uma perfeita renovação dos votos e promessas do santo batismo.
Artigo I
Uma perfeita e inteira
consagração
de si mesmo à Santíssima Virgem
de si mesmo à Santíssima Virgem
121. Esta
devoção consiste, portanto, em entregar-se inteiramente à Santíssima Virgem, a
fim de, por ela, pertencer inteiramente a Jesus Cristo.46
É preciso
dar-lhe:
1º nosso corpo
com todos os seus membros e sentidos,
2º nossa alma
com todas as suas potências,
3º nossos bens
exteriores, que chamamos de fortuna, presentes e futuros,
4º nossos
bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes e nossas
boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na
ordem da natureza e na ordem da graça, e tudo que, no porvir, poderemos ter na
ordem da natureza, da graça e da glória, e isto sem nenhuma reserva, sem a
reserva sequer de um real, de um cabelo, da menor boa ação, para toda a
eternidade, sem pretender e nem esperar a mínima recompensa de sua oferenda e
de seu serviço, a não ser a honra de pertencer a Jesus Cristo por ela e nela,
mesmo que esta amável Senhora não fosse, como é sempre, a mais liberal e
reconhecida das criaturas.
46) Cf. S.
João Damasceno: “Mentem, animam, corpus, nos iposque totos consecramus” (Sermo
I in Dormitione B. V.).
122. Importa
notar, aqui, duas coisas que há nas boas obras que fazemos, a saber: a
satisfação e o mérito, ou o valor satisfatório ou impetratório e o valor
meritório.
O valor
satisfatório ou impetratório duma boa obra é uma boa ação na medida em que
satisfaz a pena devida pelo pecado, ou em que obtêm alguma nova graça; o valor
meritório ou o mérito é uma boa ação, em quanto merece a graça e a glória
eterna.
Ora, nesta
consagração de nós mesmos à Santíssima Virgem, nós lhe damos todo o valor
satisfatório, impetratório e meritório, ou por outra, as satisfações e os
méritos de todas as nossas boas obras: damos-lhe nossos méritos, nossas graças
e nossas virtudes, não para comunicá-los a outrem (porque nossos méritos,
graças e virtudes, propriamente falando, são incomunicáveis; só Jesus Cristo,
fazendo-se nosso penhor diante do Pai, pôde comunicar-nos seus méritos), mas
para no-los conservar, aumentar e encarecer, como diremos ainda. (V. nn. 146,
ss). Damos-lhe nossas satisfações para que ela as comunique a quem bem lhe
pareça e para maior glória de Deus.
123. Daí segue 1º
que, por esta devoção, damos a Jesus Cristo, do modo mais perfeito, pois
que o fazemos pelas mãos de Maria, tudo que lhe podemos dar, e muito mais que
por outras devoções, pelas quais lhe damos uma parte de nosso tempo ou de
nossas boas obras, ou uma parte de nossas satisfações e mortificações.
Aqui damos e consagramos tudo, até o direito de dispor dos bens interiores, e
as satisfações que ganhamos por nossas boas obras, dia a dia: e isto não se faz
nem mesmo numa ordem religiosa.
Nestas,
consagram-se a Deus os bens de fortuna pelo voto de pobreza, os bens do corpo
pelo voto de castidade, a vontade própria pelo voto de obediência, e, às vezes,
a liberdade do corpo pelo voto de clausura. Não se lhe dá, porém, a liberdade
ou o direito que temos de dispor de nossas boas obras, nem se renuncia tanto
como se pode ao que o cristão tem de mais precioso e caro: seus méritos e
satisfações.
124. 2º Uma
pessoa, que assim voluntariamente se consagrou e sacrificou a Jesus Cristo por
Maria, já não pode dispor do valor de nenhuma de suas boas ações. Tudo o que
sofre, tudo o que pensa, diz e faz de bem pertence a Maria, para que ela de
tudo disponha conforme a vontade e para maior glória de seu Filho, sem que,
entretanto, esta dependência prejudique de modo algum as obrigações de estado
no qual esteja presentemente, ou venha a estar no futuro: por exemplo, as
obrigações de um sacerdote que, por dever de ofício ou por outro motivo, deve
aplicar o valor satisfatório e impetratório da santa missa a um particular;
pois não se faz esta oferta a não ser conforme a ordem de Deus e os deveres de
estado.
125. 3º A
consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo; à
Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir
a nós e nós a ele; e a Nosso Senhor como o nosso fim último, ao qual devemos
tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus.
Artigo II
Uma perfeita renovação
dos votos do batismo
126. Disse acima
(V. nº 120) que a esta devoção podia-se chamar muito bem uma perfeita renovação
dos votos ou promessas do santo batismo.
Todo
cristão, antes do batismo, era escravo do demônio, pois lhe pertencia. Na
ocasião do batismo o cristão, por sua própria boca ou pela de seu padrinho e de
sua madrinha, renunciou a Satanás, a suas pompas e obras, e tomou Jesus Cristo para seu
Mestre e soberano Senhor, passando a depender dele, na qualidade de escravo por
amor. É o que se faz pela presente devoção: renuncia-se (como
está indicado na fórmula de consagração) ao demônio, ao mundo, ao pecado
e a si próprio, dando-se inteiramente a Jesus Cristo pelas mãos de Maria.
Faz-se até algo mais, pois se, no batismo, falamos ordinariamente pela boca de
outrem, pela boca do padrinho ou da madrinha, nesta devoção fazemo-lo nós
mesmos, voluntariamente, com conhecimento de causa.
No batismo
não é pelas mãos de Maria que nos damos a Jesus Cristo, pelo menos duma maneira
expressa, nem fazemos doação a ele do valor de nossas boas ações; depois do
batismo, ficamos inteiramente livres de aplicar esse valor a quem quisermos ou
de conservá-lo para nós. Por essa devoção, damo-nos, porém, a Nosso Senhor
pelas mãos de Maria, e lhe consagramos o valor de todas as nossas ações.
127. No
santo batismo, diz Santo Tomás, os homens fazem o voto de renunciar ao demônio
e às suas pompas: “In baptimo vovent homines abrenuntiare diabolo
et pompis eius”.47 E este voto, afirma Santo Agostinho, é o maior e o
mais indispensável. “Votum maximum nostrum quo vovimus nos Christo
esse mansuros”.48 É também o que dizem os canonistas: “Praecipuum votum
est quod in baptismate facimus” – o voto principal é o que fazemos no
batismo. Quem, entretanto, guarda tão grande voto? Quem é que mantém
fielmente as promessas do santo batismo? Não é um fato que quase todos os
cristãos falseiam à fidelidade que no batismo prometeram a Jesus Cristo? Donde
poderá vir esse desregramento universal senão do esquecimento em que se vive
das promessas e compromissos do santo batismo, e por que cada um não ratifica
espontaneamente o contrato de aliança feito com Deus por seu padrinho e sua
madrinha?
47) Summa Theol. 2-2, q. 88, art. 2, arg. 1.
48) Epistola
59 ad Paulin.
128. É tão
verdade isto, que o Concílio de Sens convocado por ordem de Luís o Bonachão
para pôr cobro às grandes desordens dos cristãos, declarou que a causa
principal da corrupção reinante vinha do esquecimento e ignorância em que se
vivia dos compromissos tomados no santo batismo; e não encontrou melhor
remédio tão grande mal do que induzir os cristãos a renovar as promessas do
santo batismo.
129. O Catecismo
de Concílio de Trento, fiel intérprete deste santo Concílio, exorta os curas a
fazer o mesmo, e a relembrar aos fiéis que estão ligados e consagrados a Nosso
Senhor Jesus Cristo, como escravos a seu Redentor e Senhor. Eis as palavras
textuais: “Parochus fidelem populum ad eam rationem cohortabitur ut sicat
aequissimum esse... nos ipsos, nom secus ac mancipia Redemptori nostro et
Domino in perpetuum addicere et consecrare”.49
49) Catec.
Conc. Trid., p. I, cap. 3, art. 2, § 15, “De secundo Symboli articulo” in fine.
130. Ora, se os
Concílios, os Santos Padres e a própria experiência nos mostram que o melhor
meio de remediar os desregramentos dos cristãos é fazê-los relembrar as
obrigações assumidas no batismo e renovar os votos que então fizeram, não é
natural que se faça isto presentemente, de um modo perfeito, por esta devoção e
consagração a Nosso Senhor, por intermédio de sua Mãe Santíssima? Digo “de um
modo perfeito” porque nos servimos, nesta consagração a Jesus Cristo, do mais
perfeito de todos os meios, que é a Santíssima Virgem.
Respostas a algumas
objeções
131. Não
se pode objetar que esta devoção seja nova ou sem importância. Não é
nova porque os concílios, os padres e muitos autores antigos e modernos falam
desta consagração a Nosso Senhor ou renovação das promessas do batismo, como de
uma prática antiga, aconselhando-a a todos os cristãos. Esta prática
também não é sem importância, pois a principal fonte de todas as desordens e
conseqüente condenação dos cristãos está no esquecimento e indiferença por esta
renovação.
132. Alguns
podem alegar que esta devoção, levando-nos a dar a Nosso Senhor, pelas mãos de
Maria Santíssima, o valor de todas as nossas boas obras, orações, mortificações
e esmolas, nos torna impotentes para socorrer as almas de nossos parentes,
amigos e benfeitores.
A esses
respondo primeiro que não é crível que nossos amigos, parentes ou benfeitores
sofram prejuízo por nos termos devotado e consagrado sem reserva ao serviço de
Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Seria fazer uma injúria ao poder
e bondade de Jesus e Maria, que saberão muito bem valer os nossos parentes,
amigos e benfeitores, aproveitando o nosso crédito espiritual, ou por outro
meio qualquer.
Segundo, esta
prática não impede que rezemos pelos outros, vivos ou mortos, se bem que a
aplicação de nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem;
e, bem ao contrário, esta circunstância nos levará a rezar com muito mais
confiança, do mesmo modo que uma pessoa rica, que tivesse doado a um
grande príncipe todos os seus bens, rogaria com redobrada confiança a esse
príncipe que beneficiasse a algum amigo necessitado. Seria até causar prazer a
esse príncipe dar-lhe ocasião de demonstrar seu reconhecimento a uma pessoa que
de tudo se tivesse despojado para engrandecê-lo, que se tivesse reduzido a
completa pobreza para honrá-lo. O mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e
da Santíssima Virgem: eles jamais se deixarão vencer em reconhecimento.
133. Outros
dirão, talvez: Se eu der à Santíssima Virgem todo o valor de minhas ações para
que ela o aplique a quem quiser, terei de sofrer talvez muito tempo no
purgatório.
Esta
objeção, produto do amor-próprio e da ignorância da liberalidade de Deus e de
sua Mãe Santíssima, destrói-se por si mesmo. Uma alma
cheia de fervor e generosa, que antepõe os interesses de Deus aos seus
próprios, que tudo que tem dá a Deus inteiramente, sem reserva, que só aspira à
glória e ao reino de Jesus Cristo por intermédio de sua Mãe Santíssima, e que
se sacrifica completamente para obtê-lo, esta alma generosa, repito, e liberal,
será castigada no outro mundo por ter sido mais liberal e desinteressada que as
outras? Muito ao contrário, é a esta alma, como veremos a seguir, que
Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima se mostram mais generosos neste mundo e no
outro, na ordem da natureza, da graça e da glória.
134. Vejamos
agora, o mais brevemente que pudermos, os motivos que nos recomendam esta
devoção, os maravilhosos efeitos que ela produz nas almas fiéis, e as práticas
desta devoção.
Capítulo V
Motivos que nos
recomendam esta devoção
Artigo I
Esta devoção nos põe
inteiramente ao serviço de Deus
135. Primeiro motivo, que nos mostra a excelência
desta consagração de nós mesmos a Jesus Cristo pelas mãos de Maria.
Desde que
não se pode conceber sobre a terra emprego mais relevante que o serviço de
Deus; se o menor servidor de Deus é mais rico, mais poderoso e mais nobre que
todos os reis e imperadores da terra que não sejam também servidores de Deus,
quais não serão as riquezas, o poder e a dignidade do fiel e perfeito servidor
que se tiver devotado ao serviço divino, tão inteiramente e sem reserva quanto
for capaz!? Assim será um fiel e amoroso escravo de Jesus e Maria, que,
pelas mãos de Maria Santíssima, se entregar inteiramente ao serviço deste Rei
dos reis, e que não reservar nada para si: nem todo ouro da terra e as
belezas do céu o podem pagar.
136. As outras
congregações, associações e confrarias eretas em honra de Nosso Senhor e de
Nossa Senhora, que promovem grande bem no cristianismo, não mandam que se dê
tudo sem reserva; não prescrevem a seus associados mais que certas práticas e
atos para satisfazerem suas obrigações; deixam-nos livres em todas as outras
ações e instantes de sua vida. Mas nesta devoção, que apresento, damos
sem reserva a Jesus e Maria todos os nossos pensamentos, palavras, ações e
sofrimentos, e todos os momentos da vida: de sorte que, ou despertados
ou adormecidos, bebendo ou comendo, nas ações as mais importantes como nas mais
corriqueiras, pode-se sempre dizer em verdade que o fazemos, embora nem sequer
nos ocorra a idéia, pertence a Jesus e Maria em virtude da nossa oferta, a
menos que a retratemos expressamente. Que consolação!
137. Além disso,
como já ficou dito, não há outra prática como esta, pela qual nos desfazemos
facilmente dum certo espírito de propriedade, que se insinua até nas melhores
ações; e nosso bom Jesus nos dá esta grande graça em recompensa do ato heróico
e desinteressado que fizemos, cedendo-lhe, pelas mãos de sua Mãe Santíssima,
todo o valor de nossas boas obras. Se, mesmo neste mundo, ele dá o
cêntuplo àqueles que, por seu amor, abandonam os bens exteriores, temporais e
caducos (cf. Mt 19, 20), em que proporção dará aos que lhe
sacrificarem até seus bens interiores e espirituais?!
138. Jesus,
nosso divino amigo, deu-se a nós sem reserva, seu corpo e sua alma, suas
virtudes, graças e méritos: “Se toto totum me comparavit” – diz São
Bernardo: Ele ganhou-me inteiramente dando-se inteiramente a mim. A
justiça e a gratidão exigem, portanto, que lhe demos tudo que pudermos. Foi ele
o primeiro a ser liberal para conosco; sejamos também generosos para com sua
liberalidade, durante a vida, na hora da morte e por toda a eternidade.
“Cum liberali liberalis erit”.
Artigo II
Esta devoção leva a
imitar o exemplo
dado por Jesus Cristo,
e a praticar a humildade
139. Segundo motivo, que nos mostra que é justo e
vantajoso aos cristãos consagrar-se, por esta prática, inteiramente à
Santíssima Virgem, a fim de pertencer mais perfeitamente a Jesus Cristo.
Este bom
Mestre não desdenhou encerrar-se no seio da Santíssima Virgem, como um cativo,
um escravo amoroso, e submeter-se a ela, obedecendo-lhe durante trinta anos. É aqui,
repito, que o espírito humano se confunde, quando reflete seriamente nesta
atitude da divina Sabedoria encarnada, que não quis, embora podendo, dar-se
diretamente aos homens, preferindo fazê-lo por intermédio da Santíssima Virgem;
que não quis aparecer no mundo em plena idade viril, independentemente de quem
quer que fosse, mas como uma criancinha dependendo dos cuidados de sua Mãe
Santíssima, e mantida por ela.
Esta
Sabedoria infinita, cheia de um desejo imenso de glorificar a Deus seu Pai e de
salvar os homens, não encontrou meio algum mais perfeito nem mais simples de
fazê-lo, do que submetendo-se em todas as coisas à Santíssima Virgem, não só
durante oito, dez ou quinze anos, mas durante trinta anos; e Ele deu mais
glória a Deus seu Pai durante todo esse tempo de submissão à Santíssima Virgem,
como não lhe deu empregando os últimos três anos de sua vida a fazer prodígios,
e pregar por toda parte, a converter os homens. Oh! que grande glória
damos a Deus, submetendo-nos a Maria, a exemplo de Jesus.
Com um
exemplo tão visível e conhecido por todo mundo, seremos insensatos a ponto de
pensar que encontraremos um meio mais perfeito e mais certo submetendo-nos a
Maria, a exemplo de seu Filho?
140. Lembremos
aqui, para prova da dependência que devemos ter para com Maria, o que já ficou
dito (nn. 14-39), citando os exemplos que nos dão o Pai, o Filho e o Espírito
Santo nesta dependência. Deus Pai nos deu e nos dá seu Filho por ela
somente, só produz outros filhos por meio dela, e só por intermédio dela nos
comunica suas graças. Deus Filho foi formado para todo o mundo, por
ela, e não é senão por ela que é formado todos os dias, e gerado por ela em
união com o Espírito Santo, é ela a única via pela qual nos comunica suas
virtudes e seus méritos. O Espírito Santo formou Jesus Cristo por meio
dela, e por meio dela forma os membros de seu corpo místico, e só por ela nos
dispensa seus dons e favores. Depois de exemplos tão claros e
instantes, poderemos, sem uma extrema cegueira, prescindir de Maria,
deixar de consagrar-nos a ela e de depender dela para irmos a Deus e a ele nos
sacrificarmos?
141. Eis algumas
passagens dos Santos Padres, que escolhi como prova do que acabo de dizer: “Duo
filii Mariae sunt, homo Deus e homo purus; unius corporaliter, et alterius
spiritualiter mater est Maria” (S. Boav. e Orígenes).50
50) “Maria
tem dois filhos, um, homem-Deus e o outro, puro homem; de um Maria é Mãe
corporal, do outro, mãe espiritual” (Speculum B.M.V., lect. III, § 1,
2º).
“Haec est
voluntas Dei, qui totum nos voluit habere per Mariam; ac proinde, si quid spei,
si quid gratiae, si quid salutis, ab ea noverimus redundare” (S.
Bern.).51
51) São
Bernardo (De Aquaeductu, n. 6): “Tal é a vontade de Deus que quis que
tenhamos tudo por Maria. Se, portanto, temos alguma esperança, alguma graça,
algum dom salutar, saibamos que isto nos vem por suas mãos”.
“Omnia dona,
virtutes, gratiae ipsius Spiritus Sancti, quibus vult, et quando vult, quomodo
vult, quantum vult per ipsius manus administrantur” (S.
Bernardino).52
52) São
Bernardino de Sena (Sermo in Nativ. B.V. art. un., cap. 8): “Todos os
dons, virtudes e graças do Espírito Santo são distribuídos pelas mãos de Maria,
a quem ela quer, quando quer, com o quer, e quanto quer”.
“Qui
indignus eras cui daretur, datum est Mariae, ut per eam acciperes quidquid
haberes” (S. Bernardo).53
53) São
Bernardo (Sermo 3 in vigilia Nativitatis Domini, n. 10): “Eras
indigno de receber as graças divinas: por isso elas foram dadas a Maria, a fim
de que por ela recebesses tudo o que terias”.
142. Deus,
vendo que somos indignos de receber suas graças diretamente de suas mãos
divinas, dá-as a Maria, a fim de obtermos por ela o que ele nos quer dar; e
também redunda em glória para ele, receber pelas mãos de Maria o
reconhecimento, o respeito e o amor que lhe devemos por seus benefícios.
É, pois, muito justo que imitemos o procedimento de Deus, a fim – diz São
Bernardo54 – de que a graça volte a seu autor pelo mesmo canal por onde veio: “Ut
eodem alveo ad largitorem gratia redeat quo fluxit”.
54) “De
Aquaeductu”, n. 18.
É o que
fazemos por meio de nossa devoção: oferecemos e consagramos à Santíssima
Virgem tudo o que somos e tudo o que possuímos, a fim de que Nosso Senhor
receba por sua mediação a glória e o reconhecimento que lhe devemos. Reconhecemo-nos
indignos e incapazes de, por nós mesmos, aproximar-nos de sua majestade infinita;
e por isso servimo-nos da intercessão da Santíssima Virgem.
143. Além disso,
é uma prática de grande humildade, virtude que Deus ama acima de todas as
outras. Uma alma que se eleva a si mesma, rebaixa Deus; Deus resiste aos
soberbos e dá sua graça aos humildes (Tg 4, 6). Se vos rebaixais
crendo-vos indignos de aparecer diante dele e de vos aproximar dele, ele desce,
rebaixa-se para vir até vós, para comprazer-se em vós, e para vos elevar.
Quando,
porém, tentamos aproximar-nos atrevidamente de Deus, sem medianeiro, Deus se
esquiva e não conseguimos atingi-lo. Oh! quanto ele ama a humildade de
coração. É a esta humildade que convida esta prática de devoção,
pois ensina a não nos aproximarmos diretamente de Nosso Senhor, por
misericordioso e doce que ele seja, mas a nos servirmos sempre da intercessão
da Santíssima Virgem tanto para comparecer diante de Deus, como para lhe falar,
aproximar-nos dele, oferecer-lhe qualquer coisa, para nos unirmos ou nos
consagrarmos a ele.
Artigo III
Esta devoção nos
proporciona as boas graças da Santíssima Virgem
§ I. Maria se dá a
quem é seu escravo por amor.
144. Terceiro motivo. A Santíssima Virgem, Mãe de doçura e
misericórdia, que jamais se deixa vencer em amor e liberalidade, vendo que
alguém se lhe entrega inteiramente, para honrá-la e servir-lhe, despojando-se
do que tem de mais caro para com isso adorná-la, entrega-se também inteiramente
e dum modo inefável, a quem tudo lhe dá. Ela o faz imergir no abismo de suas
graças, e reveste-o de seus merecimentos, dá-lhe o apoio de seu poder,
ilumina-o com sua luz, abrasa-o de seu amor, comunica-lhe suas virtudes:
sua humildade, sua fé, sua pureza, etc.; constitui-se seu penhor, seu
suplemento, seu tudo para com Jesus. Como, enfim, essa pessoa consagrada é toda
de Maria, Maria também é toda dela; de modo que se pode dizer desse perfeito
servo e filho de Maria o que São João Evangelista diz de si próprio, que ele a
tomou como um bem, para sua casa: “Accepit eam discipulus in sua” (Jo
19, 27).
145. É
isto que produz na alma fiel uma grande desconfiança, desprezo e ódio de si
mesma, ao lado de uma confiança ilimitada na Santíssima Virgem, sua boa
Senhora. Já não procura, como antes, o seu apoio em suas próprias
disposições, intenções, méritos, virtudes e boas obras, pois, tendo sacrificado
tudo a Jesus por esta boa Mãe, só lhe resta um tesouro que resume todos os seus
bens e de que ele não dispõe, e esse tesouro é Maria.
É o que o
faz aproximar-se de Nosso Senhor, sem receio servil nem escrupuloso, e rezar
com extrema confiança; é o que o faz adquirir os sentimentos do devoto e
sábio abade Ruperto, o qual, aludindo à vitória de Jacob sobre o anjo (cf. Gn
32, 23), dirige à Santíssima Virgem estas belas palavras: “Ó Maria, minha
princesa e Mãe Imaculada de Deus-homem, Jesus Cristo, é meu desejo lutar com
este Homem, isto é, o Verbo divino, armado não com meus próprios méritos, mas
com os vossos: “O Domina, Dei Genitrix, Maria, et incorrupta Mater
Dei e hominis, non meis, sed tuis armatus meritis, cum isto Viro,
scilicet Verbo Dei, luctare cupio”.55
55) Rup., Prolog. in Cant.
Oh! Quão
poderoso e forte é, para Jesus Cristo, quem está armado dos méritos e da
intercessão da digna Mãe de Deus, que, como diz Santo Agostinho, venceu
amorosamente o Todo-poderoso.
§ II. Maria purifica
nossas boas obras,
embeleza-as e as torna
aceitáveis a seu Filho.
146. Esta
bondosa Senhora purifica, embeleza e torna aceitáveis a seu Filho todas as
nossas boas obras, porque, por esta devoção, as damos todas a ele pelas mãos de
sua Mãe Santíssima.
1º Ela as
purifica de toda mancha de amor-próprio e do apego imperceptível à criatura,
apego que se insinua insensivelmente nas melhores ações. Desde que elas estão
em suas mãos puríssimas e fecundas, estas mesmas mãos, que não foram jamais
manchadas nem ociosas, e que purificam tudo que tocam, tiram do presente que
lhe fazemos tudo que pode deteriorá-lo ou torná-lo imperfeito.
147. 2º Ela
embeleza nossas boas ações ornando-as com seu méritos e virtudes. É
como se um campônio, querendo ganhar a amizade do rei, se dirigisse à rainha, e
lhe apresentasse uma maçã, que representasse todo o seu lucro, e lhe pedisse
que a oferecesse ao rei. A rainha, acolhendo a pobre dádiva do camponês,
punha-a no centro de grande e magnífico prato de ouro, e apresentava-a assim ao
rei, da parte do ofertante. Nestas circunstâncias, a maçã, indigna por
si mesma de ser oferecida ao rei, torna-se um presente digno de sua majestade, devido
ao prato de ouro e à importância da pessoa que a apresenta.
148. 3º
Ela apresenta essas boas obras a Jesus Cristo, pois nada retém para si do que
lhe ofertamos. Tudo remete fielmente a Jesus. Se algo lhe damos a
ela, damos necessariamente a Jesus. Se a louvamos e glorificamos,
logo ela louva e glorifica a Jesus. Hoje como outrora, quando Santa Isabel a
exaltou, ela canta, quando a louvamos e bendizemos: “Magnificat anima mea
Dominum...” (Lc 1, 46).
149. 4º Faz
Jesus aceitar essas boas obras, por pequeno e pobre que seja o presente que
ofertamos ao Santo dos Santos e Rei dos reis. Quando apresentamos
alguma coisa a Jesus, de nossa própria iniciativa e apoiados em nossa própria
capacidade e disposição, Jesus examina o presente e muitas vezes o rejeita em
vista das manchas que a dádiva contraiu do nosso amor-próprio, como antigamente
rejeitou os sacrifícios dos judeus por estarem cheios de vontade própria.
Quando,
porém, lhe apresentamos algo pelas mãos puras e virginais de sua bem-amada,
tomamo-lo pelo seu lado fraco, se me é permitida a expressão. Ele não considera
tanto a oferta que lhe fazemos como sua boa Mãe que lha apresenta; não
olha tanto a procedência como a portadora. Deste modo, Maria, que nunca
foi repelida, e, pelo contrário, foi sempre bem recebida, faz que seja
agradavelmente recebido pela Majestade divina tudo que lhe apresenta, pequeno
ou grande: basta que Maria lho apresente para que Jesus o receba e acolha.
Conselho valioso é o que dava São Bernardo aos que dirigia no caminho da
perfeição: “Quando quiserdes oferecer qualquer coisa a Deus, tende o
cuidado de oferecê-lo pelas mãos agradáveis e digníssimas de Maria, a menos que
queirais ser rejeitados” – Modicum quid offerre desideras, manibus
Mariae offerendum tradere cura, si non vis sustinere repulsam.56
56) São
Bernardo: “De Aquaeductu”.
150. E, como
vimos (n. 146), a própria natureza não inspira aos pequenos como agir em
relação aos grandes? Por que não há de levar-nos a graça a fazer o mesmo em
relação a Deus, que está infinitamente acima de nós, e diante do qual somos
menos que átomos? Tendo além disso uma advogada tão poderosa, que não foi
jamais repelida; tão habilidosa que conhece os segredos para ganhar o Coração
de Deus; tão boa e caridosa que não se esquiva a ninguém, por pequeno e mau que
seja.
Referirei
mais adiante a verdadeira figura das verdades que afirmo, na história de Jacob
e Rebeca (v. cap. VI).
Esta devoção é um meio
excelente
de promover a maior
glória de Deus
151. Quarto motivo. Esta devoção fielmente
praticada é um excelente meio para fazer com que o valor de todas as nossas
boas obras contribua para a maior glória de Deus. Quase ninguém age com este
nobre intuito, apesar de a isto estarmos obrigados, ou porque não conhece em que
consiste a maior glória de Deus, ou porque não a quer.
Mas a
Santíssima Virgem, a quem conferimos o valor de nossas boas obras, sabe
perfeitamente em que consiste a maior glória de Deus, e nada faz que não
contribua para este fim. Daí, um perfeito servo dessa amável Soberana, que a
ela se consagrou inteiramente, como dissemos, pode dizer ousadamente que o
valor de todas as suas ações, pensamentos e palavras, é aproveitado para a
maior glória de Deus, a não ser que revogue expressamente a intenção de sua oferta.
Pode-se encontrar algo de mais consolador para uma alma que ama a Deus
com um amor puro e desinteressado, e que preza mais a glória e os interesses de
Deus, que os seus próprios interesses?
Artigo V
Esta devoção conduz à
união com Nosso Senhor
152. Quinto motivo. Esta devoção é um
caminho fácil, curto, perfeito e seguro para chegar à união com Nosso Senhor, e
nisto consiste a perfeição do cristão.
§ I. Esta devoção é um
caminho fácil.
É um caminho
fácil; é um caminho que Jesus Cristo abriu quando veio a nós, e no qual não há
obstáculo que nos impeça de chegar a ele. Pode-se, é verdade, chegar a ele
por outros caminhos; mas encontram-se muito mais cruzes e mortes estranhas, e
muito mais empecilhos, que dificilmente se vencem. Será preciso passar por
noites obscuras, por combates e agonias terríveis, escalar montanhas
escarpadas, pisando espinhos agudos, atravessar desertos horríveis. Enquanto
que pelo caminho de Maria passa-se com muito mais doçura e tranqüilidade.
Aí se
encontram, sem dúvida, rudes combates a travar, e dificuldades enormes para
vencer. Mas esta boa Mãe e Senhora está sempre tão próxima e presente a
seus fiéis servos, para alumiá-los em suas trevas, esclarecê-los em suas
dúvidas, encorajá-los em seus receios, sustê-los em seus combates e
dificuldades, que, em verdade, este caminho virginal, para chegar a Jesus
Cristo é um caminho de rosas e de mel, em vista de outros caminhos.
Houve alguns
santos, mas em pequeno número, como Santo Efrém, São João Damasceno, São
Bernardo, São Bernardino, São Boaventura, São Francisco de Sales, etc., que
trilharam este caminho ameno para ir a Jesus Cristo, porque o Espírito
Santo, esposo fiel de Maria, o indicou a eles por uma graça especial;
os outros santos, porém, que são em muito maior número, embora tenham tido
devoção à Santíssima Virgem, não entraram, ou entraram muito pouco, nesta via.
E por isso tiveram de arrostar provas bem mais rudes e mais perigosas.
153. A que
atribuir, então, – dirá algum fiel servidor desta boa Mãe, – que seus servos
tenham de enfrentar tantas ocasiões de sofrer, e mais que os outros que não lhe
são devotos? Contradizem-nos, perseguem-nos, caluniam-nos, não os suportam57;
ou, então, andam em trevas interiores, e em aridez de deserto onde não pinga
nem uma gota de orvalho celeste. Se esta devoção torna mais fácil o caminho que
conduz a Jesus Cristo, donde vem que eles são tão desprezados?
57) Cf. S.
Boaventura: “Servientes tibi plus aliis invadunt dracones inferni” (Psalter.
maius B. V., Sl 118).
154. Respondo-lhes
que é bem verdade que os mais fiéis servos da Santíssima Virgem, porque são os
seus grandes favoritos, recebem dela as maiores graças e favores do céu, isto
é, as cruzes; mas sustento que são também os servidores de Maria
que levam estas cruzes com mais facilidades, mérito e glória; e mais
que, onde outro qualquer pararia mil vezes e até cairia, eles não se detêm e,
ao contrário, avançam sempre, porque esta boa Mãe, cheia de graça e unção
do Espírito Santo, adoça todas as cruzes que para eles talha, no mel de sua
doçura maternal e na unção do puro amor; deste modo, eles as suportam
alegremente, como nozes confeitadas, que, de natureza, são amargas.
E creio que
uma pessoa que quer ser devota e viver piedosamente em Jesus Cristo, e, por
conseguinte, sofrer perseguições e carregar todos os dias sua cruz, não
carregará nunca grandes cruzes, ou não as carregará alegremente até ao fim, sem
uma terna devoção à Santíssima Virgem, que torna doces as cruzes; do mesmo
modo que uma pessoa não poderia, sem uma grande violência, impossível de manter
indefinidamente, comer nozes verdes que não fossem saturadas de açúcar.
§ II. Esta devoção é
um caminho curto.
155. Esta
devoção à Santíssima Virgem é um caminho curto58, para encontrar Jesus Cristo,
seja porque dele não nos extraviamos, seja porque, como acabo de dizer, nele
marchamos com mais alegria e facilidade, e, conseqüentemente, com mais
prontidão. Avançamos mais, em pouco tempo de submissão e dependência a
Maria, do que em anos inteiros de vontade própria e contando apenas com o
próprio esforço; pois o homem obediente e submisso a Maria Santíssima cantará
vitórias (Prov. 21, 28) assinaladas sobre seus inimigos.
Estes hão de querer impedi-lo de avançar, ou obrigá-lo a recuar, ou derrubá-lo;
mas, apoiado, auxiliado e guiado por Maria, ele, sem cair, sem recuar, sem
mesmo atrasar-se, avançará a passos de gigante em direção a Jesus Cristo, pelo
mesmo caminho, que, como está escrito (Sl 18, 6), Jesus trilhou para vir
a nós em largos passos e em pouco tempo.
58) Cf. S.
Bernardo : “Tu es via compendiosa in caelo” (Laudes glor. Virginis). – Cf.
Bento XV: “Recta et tanquam compendiaria via ad Iesum per Mariam itur” (Epist.
ad R. P. D. Schoepfer. – AAS 1914, p. 515).
156. Por que
viveu Jesus Cristo tão pouco sobre a terra, e por que esses poucos anos que
aqui viveu passou-os quase todos em submissão e obediência a sua Mãe? Ah!
é que, tendo vivido pouco, encheu a carreira de uma longa vida (Sb 4,
13); viveu longamente e mais do que Adão, do qual veio reparar as perdas,
embora este tenha vivido mais de novecentos anos; e Jesus Cristo viveu
longamente, porque viveu bem submisso e bem unido a sua Mãe Santíssima, para
obedecer a Deus seu Pai; pois:
1º aquele
que honra sua mãe assemelha-se a um homem que entesoura, diz o Espírito Santo,
isto é, aquele que honra a Maria, sua Mãe, ao ponto de submeter-se a ela e
obedecer-lhe em tudo, em breve se tornará rico, pois acumula tesouros todos os
dias, pelo segredo desta pedra filosofal: “Qui honorat matrem, quasi
qui thesaurizat” (Ecli 3, 5);
2º porque,
conforme uma interpretação espiritual da palavra do Espírito Santo: “Senectus
mea in misericordia uberi, - Minha velhice se encontra na
misericórdia do seio” (Sl 91, 11), é no seio de Maria, que “envolveu
e gerou um homem perfeito” (cf. Jer 31, 22), e que “teve a
capacidade de conter aquele que o universo todo não compreende nem contém”59,
é no seio de Maria que os jovens envelhecem em luz, em santidade, em
experiência e em sabedoria, e onde, em poucos anos, se atinge a plenitude da
idade de Jesus Cristo.
59) Cf.
Gradual da Missa da Santíssima Virgem (de Pentecostes ao Advento); 1º Responso
do Ofício da Santíssima Virgem.
§ III. Esta devoção é
um caminho perfeito.
157. Esta
prática de devoção à Santíssima Virgem é um caminho perfeito para ir e unir-se
a Jesus Cristo, pois Maria é a mais perfeita e a mais santa das criaturas, e
Jesus Cristo, que veio perfeitamente a nós, não tomou outro caminho em sua
grande e admirável viagem. O Altíssimo, o Incompreensível, o
Inacessível, aquele que é, quis vir a nós, pequenos vermes da terra, que nada
somos. Como se fez isto? O Altíssimo desceu perfeita e divinamente até
nós por meio da humilde Maria, sem nada perder de sua divindade e santidade;
e é por Maria que os pequeninos devem subir perfeita e divinamente ao Altíssimo
sem recear coisa alguma.
O
Incompreensível deixou-se compreender e conter perfeitamente por Maria, sem
nada perder de sua imensidade; é também pela pequena Maria que devemos
deixar-nos conduzir e conter perfeitamente sem a menor reserva. O Inacessível
aproximou-se, uniu-se estreitamente, perfeitamente e até pessoalmente à nossa
humanidade por meio de Maria, sem perder uma parcela de sua majestade; é também
por Maria que devemos aproximar-nos de Deus e unir-nos a sua majestade,
perfeita e estreitamente, sem temor de repulsa.
Aquele que é
quis, enfim, vir ao que não é, e fazer que aquele que não é se torne Deus ou
aquele que é. E ele o fez perfeitamente, dando-se e submetendo-se inteiramente
à Virgem Maria sem deixar de ser no tempo aquele que é na eternidade;
outrossim, é por Maria que, se bem que sejamos nada, podemos tornar-nos
semelhantes a Deus, pela graça e pela glória, dando-nos a ela tão perfeita e
inteiramente, que nada sejamos em nós mesmos e tudo nela, sem receio de
enganar-nos.
158. Ainda que
me apresentem um caminho novo para ir a Jesus Cristo, e que esse caminho seja
pavimentado com todos os merecimentos dos bem-aventurados, ornados de todas as
suas virtudes heróicas, iluminado e decorado de todas as luzes e belezas dos
anjos, e que todos os anjos e santos lá estejam para conduzir, defender e
amparar aqueles e aquelas que o quiserem palmilhar; em verdade, em verdade,
digo ousadamente, e digo a verdade, eu havia de preferir a este, tão perfeito,
o caminho imaculado de Maria: “Posui immaculatam viam meam” (Sl 18, 33),
via ou caminho sem a menor nódoa ou mancha, sem pecado original ou atual,
sem sombras nem trevas; e quando meu amável Jesus vier, em sua glória, uma
segunda vez à terra (como é certo) para aqui reinar, o caminho que escolherá
será Maria Santíssima, o mesmo pelo qual ele veio com segurança e perfeitamente
a primeira vez.
A diferença
entre a primeira e a última vinda é que a primeira foi secreta e oculta, e a
segunda será gloriosa e retumbante; ambas, porém, são perfeitas, porque, como a
primeira, também a segunda será por Maria. Eis um
mistério que não podemos compreender: “Hic taceat omnis lingua”.
§ IV. Esta devoção é
um caminho seguro.
159. Esta
devoção à Santíssima Virgem é um caminho seguro para irmos a Jesus Cristo e
adquirirmos a perfeição, unindo-nos a ele:
1º Porque esta
prática, preconizada por mim, não é nova; é tão antiga, que não se pode, como
diz Boudon60, em um livro que escreveu sobre esta devoção, determinar-lhe com
toda a precisão os começos. Em todo caso é certo que há mais de 700 anos
encontram-se vestígios dela na Igreja.61
60)
Henri-Marie Boudon, doutor em teologia, falecido em odor de santidade, em 1702,
como arcediago de Evreux. Autor do livro intitulado “A santa escravidão da
admirável Mãe de Deus”, e de outras obras, todas impregnadas de uma ardente
devoção à Santíssima Virgem.
61) O santo
rei Dagoberto II (século VII) consagrou-se assim à Santíssima Virgem, na
qualidade de escravo (cit. por Kronenburg in “Maria’s Heerlikheid”, 1, 98). O
mesmo fez o Papa João VII (701-707).
Santo
Odilon, abade de Cluni, que viveu cerca do ano 1040 foi um dos primeiros que a
praticaram na França, conforme está anotado em sua vida.
O cardeal
Pedro Damião62 refere que em 1016 o bem-aventurado Marinho, seu irmão, se fez
escravo da Santíssima Virgem, em presença de seu diretor e de um modo bem
edificante: pôs a corda ao pescoço, tomou a disciplina, e depositou sobre o
altar uma quantia de dinheiro como sinal do seu devotamento e consagração à
Santíssima Virgem; e assim continuou tão fielmente, que, na hora da
morte, mereceu ser visitado e consolado por sua boa Soberana, de cujos lábios
recebeu as promessas do paraíso em recompensa de seus serviços.
62)
Declarado “doutor da Igreja” por Leão XIII.
Cesário
Bollando menciona um ilustre cavaleiro, Vautier de Birbak, parente chegado dos
duques de Lovaina, que, aí pelo ano 1300 fez esta consagração à Santíssima
Virgem.
160. O padre
Simão de Roias da Ordem da Trindade, também chamada da redenção dos cativos,
pregador do rei Filipe III, pôs em voga esta devoção em toda a Espanha (em
1611) e na Alemanha63; a instâncias de Filipe III, obteve de Gregório XV
grandes indulgências para aqueles que a praticassem.
63) O
próprio imperador Fernando II fez esta consagração com toda a sua corte, em
1640.
O padre de
Los Rios, da Ordem de S. Agostinho, aplicou-se com seu íntimo amigo, o padre de
Roias, a espalhar esta devoção por toda a Espanha e Alemanha, o que fez por
seus escritos e pregações. Compôs um grosso volume intitulado “Hierarquia
Mariana”64, no qual trata com piedade e erudição, da antiguidade, da excelência
e da solidez desta devoção.
64) Editado
em Antuérpia em 1641.
161. Os
reverendos padres teatinos estabeleceram esta devoção na Itália, na Sicília e
na Sabóia, no século 17.
O rev. Padre
Estanislau Falácio, da Companhia de Jesus, incrementou maravilhosamente esta
devoção na Polônia.65
65) O rei da
Polônia Wladislaf encarregou os jesuítas de pregá-la em seu reino.
O rev. Padre
Cornélio a Lápide, recomendável tanto por sua piedade como por seu profundo
saber, tendo recebido de vários bispos e teólogos a incumbência de dar seu
parecer sobre esta devoção, examinou-a acuradamente e teceu-lhe louvores dignos
de sua piedade, e seu exemplo foi seguido por muitas outras pessoas
importantes.
Os
reverendos padres Jesuítas, sempre zelosos do serviço da Santíssima Virgem,
apresentaram ao duque Fernando da Baviera, em nome dos congreganistas de
Colônia, um pequeno tratado desta devoção.66 O duque, que era, então arcebispo
de Colônia, deu-lhe sua aprovação e a permissão de imprimi-lo, exortando todos
os curas e religiosos de sua diocese de propagar, quanto pudessem, esta sólida
devoção.
66)
Intitulado “Mancipium Virginis” – A escravidão da Virgem. Colônia, 1634.
162. O
cardeal de Bérulle, cuja memória é abençoada por toda a França, foi um dos mais
zelosos em espalhar esta devoção, apesar de todas as calúnias e perseguições
que lhe levantaram e moveram os críticos e os libertinos. Acusaram-nos
de inventar novidade e superstição; escreveram e publicaram contra ele um
panfleto difamatório, e serviram-se, ou antes o demônio, por seu ministério, de
mil estratagemas para impedi-lo de divulgar na França esta devoção.
Mas o grande
e santo homem só opôs a suas calúnias uma inalterável paciência, e às suas
objeções, contidas no tal libelo, um pequeno escrito em que as refuta
energicamente, demonstrando que esta devoção é fundada no exemplo de Jesus
Cristo, nas obrigações que lhe devemos, e nos votos que fizemos no santo
batismo, e é especialmente com esta última razão que ele fecha a boca a seus
adversários, fazendo ver que esta consagração à Santíssima Virgem e a Jesus
Cristo por suas mãos, nada mais é que uma perfeita renovação das promessas do
batismo. Diz, enfim, muitas coisas belas que se podem ler nas suas
obras.
163. No livro de
Boudon, já citado (n. 159), encontra-se os nomes dos Papas que aprovaram esta
devoção, dos teólogos que a examinaram, pode-se ler das perseguições que lhe
suscitaram e que venceu, e dos milhares de pessoas que a abraçaram, sem que
jamais Papa algum a tenha condenado; nem seria possível fazê-lo sem derrubar os
fundamentos do cristianismo.
Fica,
portanto, de pé que esta devoção não é nova, e que não é comum, por ser
preciosa demais para ser apreciada e praticada por todo mundo.
164. 2º Esta
devoção é um meio seguro para ir a Jesus Cristo, porque pertence à Santíssima
Virgem e lhe é próprio conduzir-nos a Jesus Cristo, como compete a Jesus Cristo
conduzir-nos ao Pai celestial. E não creiam erroneamente as pessoas
espirituais que Maria seja um empecilho no caminho que conduz à união divina.
Pois seria possível que aquela que achou graça diante de Deus para o mundo todo
em geral, e para cada uma em particular, fosse um empecilho a uma alma que
busca a grande graça da união com ele? Seria possível que aquela que tem
sido cheia e superabundante de graças, e tão unida e transformada em Deus, a
ponto de ele encarnar-se nela, impedisse uma alma de ficar perfeitamente unida
a Deus?
É verdade
que a vista de outras criaturas, ainda que santas, poderia, talvez, em certos
tempos, retardar a união divina; mas não Maria, como já disse e direi sempre sem
me cansar. Uma das razões por que tão poucas almas atingem a plenitude da
idade de Jesus Cristo, é que Maria, a Mãe do Filho e a Esposa do Espírito
Santo, não está suficientemente formada nos corações. Quem quiser o fruto bem
maduro e formado deve ter a árvore que a produz; quem quer possuir o fruto de
vida, Jesus Cristo, deve ter a árvore da vida, que é Maria. Quem quiser ter em
si a operação do Espírito Santo, deve ter sua Esposa fiel e inseparável, Maria
Santíssima, que o torna fértil e fecundo, como já dissemos alhures (nn.
20-21).
165.
Persuadi-vos, portanto, de que quanto mais contemplardes Maria em vossas
orações, meditações, ações e sofrimentos, se não de um modo distinto e
perceptível, ao menos geral e imperceptível, tanto mais perfeitamente encontrareis
Jesus Cristo, que, com Maria, é sempre grande, poderoso, ativo e
incompreensível, e muito mais que no céu e em qualquer criatura do universo. Assim,
Maria Santíssima, toda abismada em Deus, esta longe de tornar-se um obstáculo
aos perfeitos no seu caminho para chegar à união com Deus, e, bem ao contrário,
não houve até hoje, nem haverá nunca criatura que nos auxilie mais eficazmente
do que ela nesta grande obra, seja pelas graças que para este efeito vos
comunicará, pois ninguém fica cheio do pensamento de Deus se não for por ela,
diz um santo67: “Nemo cogitatione Dei repletur nisi per te”;
seja pelas ilusões e trapaças do espírito maligno contra o qual ela vos
garantirá.
67) São
Germano de Constantinopla (Sermo 2 in Dormit.).
166. Onde
está Maria, não entra o espírito maligno; e um dos sinais mais infalíveis de
que se está sendo conduzido pelo bom espírito, é a circunstância de ser muito
devoto de Maria, de pensar nela muitas vezes, e de falar-lhe freqüentemente.
É esta a opinião de um santo68 que acrescenta que, como a respiração é sinal
inconfundível de que o corpo não está morto, o pensamento assíduo e a invocação
amorosa de Maria é um sinal certo de que a alma não está morta pelo pecado.
68) Idem:
Orat. in Encaenia veneranda aedis B. V.
167. Maria
sozinha esmagou e exterminou as heresias, diz a Igreja com o Espírito Santo que
a conduz: “Sola cunctas haereses interemisti in universo mundo”69;
e embora os críticos resmunguem contra esta afirmação, jamais um fiel devoto de
Maria cairá na heresia ou na ilusão, pelo menos formal; poderá errar
materialmente, tomar a mentira por verdade, e o espírito maligno pelo bom, e
isto mesmo não tão facilmente como outro qualquer. Mais cedo ou mais tarde,
porém, reconhecerá sua falta e seu erro material, e, quando o reconhecer, não
teimará de modo algum em crer e sustentar o que tomara por verdade.
69) Ofício
da Santíssima Virgem, 1ª antífona do 3º noturno.
168. Qualquer
pessoa, portanto, sem receio de ilusão comum às pessoas de oração, que quiser
avançar no caminho da perfeição e achar segura e perfeitamente Jesus Cristo,
abrace de todo o coração, “corde magno et animo volenti” (2Mac
1, 3), esta devoção à Santíssima Virgem, que talvez ainda desconheça. Entre
neste caminho excelente que não conhecia e que eu lhe mostro (1Cor
12,31). É um caminho trilhado por Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada, nosso
único chefe. Os fiéis que o trilharem não podem estar enganados.
É um caminho
fácil devido à plenitude da graça e da unção do Espírito Santo, de que está
cheio: ninguém, que marche neste caminho, se cansa, nem recua. É um caminho
curto que em pouco tempo nos leva a Jesus Cristo. É um
caminho perfeito, onde não há lama, nem poeira, nem a menor sujeira do pecado. É,
enfim, um caminho seguro que, de um modo reto e garantido, sem voltas para a
direita ou para a esquerda, nos conduz a Jesus Cristo e à vida eterna.
Entremos, portanto, neste caminho, e marchemos dia e noite, até a plenitude da
idade de Jesus Cristo (cf. Ef. 4, 13).
Artigo VI
Esta devoção dá uma
grande liberdade interior
169.
Sexto motivo. Esta prática de devoção dá, às pessoas que
a praticam fielmente, uma grande liberdade interior, que é a liberdade dos
filhos de Deus (cf. Rm 8,21). Visto que, por esta devoção, nos tornamos
escravos de Jesus Cristo, consagrando-nos todo a ele nesta
condição, este bom Mestre, em recompensa do cativeiro por amor a que nos
submetemos, tira, primeiro, à alma todo escrúpulo e temor servil, que a
constrangem, escravizam e perturbam; segundo, alarga o coração
por uma santa confiança em Deus, fazendo-o considerá-lo como Pai;
terceiro, inspira-lhe um amor terno e filial.
170. Sem me
deter em amontoar razões para provar esta verdade, contento-me de citar uma
passagem histórica que li na vida da Madre Inês de Jesus, religiosa jacobina70
do convento de Langeac em Auvergne, a qual morreu em odor de santidade nesse
mesmo lugar, em 1634.
Não tinha
ela ainda sete anos, quando, uma ocasião, sofrendo tormentos de espírito, ouviu
uma voz que lhe disse que, se ela quisesse livrar-se de todos os seus
sofrimentos e ser protegida contra todos os seus inimigos, se fizesse
quanto antes escrava de Jesus e de sua Mãe Santíssima.
Mal chegou
em casa, entregou-se inteiramente a Jesus e Maria, como lhe aconselhara a voz,
embora não soubesse antes em que consistia esta devoção; e, tendo encontrado
uma corrente de ferro, cingiu-se com ela os rins e a usou até à morte. Depois
desse ato todas as suas penas e escrúpulos cessaram, e ela se achou numa grande
paz e bem-estar de coração, e isto a levou a ensinar esta devoção a muitas
outras pessoas, que fizeram grandes progressos, entre outros, a M.
Olier, que instituiu o seminário de São Sulpício, e a muitos outros padres e
eclesiásticos do mesmo seminário...
Um dia a
Santíssima Virgem lhe apareceu e lhe pôs ao pescoço uma cadeia de ouro para lhe
testemunhar a alegria de tê-la como escrava de seu Filho e sua; e Santa
Cecília, que acompanhava a Santíssima Virgem, lhe disse: Felizes os fiéis
escravos da Rainha do céu, pois gozarão da verdadeira liberdade: “Tibi
servire libertas”.
70) Até a
Revolução Francesa os religiosos da Ordem de São Domingos eram chamados
jacobinos, do nome da igreja de Saint-Jacques (São Tiago) em Paris, perto
da qual a Ordem se estabeleceu.
Artigo VII
Nosso próximo aufere
grandes bens desta devoção
171. Sétimo motivo. O que pode ainda levar-nos a
abraçar esta devoção são os grandes bens que por ela receberá nosso próximo.
Pois, praticando-a, exercemos para com ela a caridade de uma maneira eminente,
já que lhe damos pelas mãos de Maria o que temos de mais caro, isto é, o valor
satisfatório e impetratório de todas as nossas boas obras, sem excetuar o menor
dos bons pensamentos e o mais leve sofrimento; consentimos em que tudo que
adquirimos, e que havemos de adquirir de satisfações, seja, até à hora da
morte, empregado conforme à vontade da Santíssima Virgem, à conversão dos
pecadores ou à libertação das almas do purgatório.
Não é isto
amar perfeitamente o próximo? Não é este o verdadeiro discípulo de Jesus
Cristo, que se reconhece pela caridade? (Jo 13, 35). Não é este o
meio de converter os pecadores, sem temer a vaidade, e de livrar as almas do purgatório,
sem fazer quase nada mais do que aquilo a que cada um está obrigado em seu
estado?
172. Para
conhecer a excelência deste motivo, seria preciso conhecer o bem que é
converter um pecador ou livrar uma alma do purgatório: bem infinito, maior que
criar o céu e a terra71, pois que é dar a uma alma a posse de Deus. Mesmo que,
por esta prática, não se livrasse mais que uma alma do purgatório, ou se
convertesse apenas um pecador, não seria isto bastante para induzir todo homem
verdadeiramente caridoso a abraçá-la?
71) S. Agost., Tract. 72 in Ioann., a medio.
É preciso
notar ainda que nossas boas obras, passando pelas mãos de Maria, recebem um
aumento de pureza, e, por conseguinte, de mérito e de valor satisfatório e
impetratório; por isso elas se tornam muito mais capazes de
aliviar os pecadores do purgatório e de converter os pecadores do que se não
passassem pelas mãos virginais e liberais de Maria. O pouco que damos pela
Santíssima Virgem, sem vontade própria, e por uma desinteressada caridade, tornar-se,
em verdade, bem mais potente para abrandar a cólera de Deus e atrair sua
misericórdia; e há de verificar-se à hora da morte que uma pessoa fiel a esta
prática terá, por este meio, libertado inúmeras almas do purgatório, e
convertido muitos pecadores, conquanto só tenha feito as ações comuns e
ordinárias do seu estado. Que alegria haverá em seu julgamento! Que glória na
eternidade!
Artigo VIII
Esta devoção é um meio
admirável de perseverança
173. Oitavo motivo. Finalmente, o motivo mais
poderoso, que, de certo modo, nos induz a esta devoção à Santíssima Virgem, é
constituir um meio admirável para perseverar na virtude e ser fiel.
Como se explica que a maior parte das conversões dos pecadores não seja
durável? Donde vem a facilidade de recair no pecado? Por que a maior parte dos
justos, ao invés de avançar de virtude em virtude e adquirir novas graças,
perdem muitas vezes o pouco de virtudes e graças que tinham? Esta infelicidade
provém, como já o demonstrei (v. nn. 87-89), de que o homem, sendo tão
corrompido, tão fraco e tão inconstante, fia-se em si próprio, e crê-se capaz
de guardar o tesouro de suas graças, virtudes e méritos.
Por esta
devoção confiamos à Santíssima Virgem, fiel por excelência, tudo o que
possuímos; tomamo-la por depositária universal de todos os bens da natureza e
da graça. É em sua fidelidade que confiamos, no seu poder
que nos apoiamos, em sua misericórdia e caridade que nos baseamos para que ela
conserve e aumente nossas virtudes e méritos, a despeito do demônio, do mundo e
da carne, que envidam todos os esforços para no-los arrebatar. Dizemos-lhe como
um bom filho a sua mãe: “Depositum custodi” (1Tm 6, 20), isto é, minha
boa Mãe e Soberana, reconheço que até ao presente muito mais graças tenho de
Deus recebido por vossa intercessão, do que mereço, e minha funesta experiência
me ensina que bem frágil é o vaso em que guardo esse tesouro, e que por demais
fraco e miserável eu sou, para conservá-lo em mim: “adolescentulus
sum ergo et contemptus” (Sl 118, 141); recebei em depósito tudo o que
possuo, e conservai-mo por vossa fidelidade e vosso poder. Se me
guardardes, nada perderei; se me sustentardes, não cairei; se me protegerdes,
estarei a salvo de meus inimigos.
174. É o que diz
S. Bernardo para inspirar-nos esta prática: “Enquanto Maria vos sustenta,
não caís; enquanto vos protege, não temeis; enquanto vos conduz, não vos
fatigais; e, sendo-vos propícia, chegareis ao porto da salvação: Ipsa
tenente, non corruis; ipsa protegente, nom metuis; ipsa duce, nom fatigareis;
ipsa propitia, pervenis”72 O mesmo parece dizer São Boaventura em termos
ainda mais claros: A Santíssima Virgem, diz ele, está não só detida na
plenitude dos santos, mas também guarda e detém os santos na plenitude para que
esta plenitude não diminua; impede que suas virtudes se dissipem, que seus
méritos pereçam, que se percam sua graças, que os prejudiquem os demônios;
impede, por fim, que Nosso Senhor castigue os pecadores: “Virgo nom
solum in plenitudine sanctorum detinetur, sed etiam in plenitudine sanctos
detinet, ne plenitudo minuatur; detinet virtutes ne fugiant; detinet merita ne
pereant; detinet gratias ne effluant; detinet daemones ne noceant; detinet
Filium ne peccatores percutiat”.73
72) Homilia
2 super “Missus est” n. 17.
73) “Speculum B. V.”, lect. VII, § 6.
175. A
Santíssima Virgem é a Virgem fiel que, por sua fidelidade a Deus, repara as
perdas que Eva infiel causou por sua infidelidade, e que obtém de Deus a
fidelidade e a perseverança para aqueles que a ela se apegam. Por isso
um santo a compara à âncora firme, porque os retém e impede de soçobrar no m ar
agitado deste mundo, onde tantas pessoas naufragam por não se firmarem nesta
âncora inabalável. “Prendemos, diz ele, as almas à vossa esperança, como a uma
âncora firme: Animas ad spem tuam sicut ad firmam anchoram alligamus”.74
Foi a ela
que os santos mais se agarraram, e prenderam os outros, com o fito de
perseverar na virtude. Felizes, mil vezes felizes os cristãos que agora
se apegam fiel e inteiramente a ela, como a uma âncora firme. Os
arrancos da tempestade deste mundo não os farão submergir, nem perder os
tesouros celestes. Bem-aventurados os que nela buscam abrigo como na arca de
Noé. As águas do dilúvio de pecados, que afogam tanta gente, não lhes farão
mal, pois: “Qui operantur in me non peccabunt” – os que se guiam por mim não
pecarão (Ecli 24, 30), diz ela com a Sabedoria.
Bem-aventurados
os filhos infiéis da desgraçada Eva que se apegam à Mãe e Virgem fiel, que
permanecem sempre fiéis e que não faltam jamais à sua palavra: “Fidelis
permanet, se ipsam negare non potest”75, e que ama aqueles que a amam: “Ego
diligentes me diligo” (Prov 8, 17), não só um amor afetivo, mas um amor
efetivo e eficaz, impedindo-os, por uma grande abundância de graças, de recuar
na virtude, ou de cair no caminho, perdendo a graça de seu Filho.
74) S. João
Damasceno, “Sermo 1 in Dormitione B. M. V.”.
75)
Aplicação à Santíssima Virgem das palavras de São Paulo: 2Tm 2, 13.
176. Esta boa
Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo que lhe entregamos em depósito; e,
desde que ela o recebeu como depositária, é obrigada por justiça, em virtude do
contrato de depósito, a guardá-lo para nós; do mesmo modo que uma pessoa, a
quem eu confiasse mil escudos, seria obrigada a guardá-los para mim, de tal
modo que se, por sua negligência, meus mil escudos se perdessem seria ela, com
justiça, a responsável. Mas isto não acontece, pois Maria, a virgem fiel,
jamais deixaria perder-se, por sua negligência, o que lhe tivéssemos confiado.
Antes passarão o céu e a terra do que ela ser negligente e infiel para com
aqueles que dela se fiam.
177. Pobres
filhos de Maria! extrema é vossa fraqueza, grande, vossa inconstância, viciado,
o vosso íntimo! Sois, eu o confesso, da mesma massa corrompida que os
filhos de Adão e Eva; mas não percais por isso a coragem; consolai-vos,
regozijai-vos: eis o segredo que vos ensino, segredo desconhecido de quase
todos os cristãos, até dos mais devotos.
Não deixeis
vosso ouro e vossa prata nos cofres, já forçados pelo espírito maligno que vos
roubou, cofres por demais exíguos e fracos e velhos para conter um tesouro tão
grande e tão precioso. Não depositeis a água pura e cristalina da fonte
em vossos vasos machados e infeccionados pelo pecado. Pode ser que o
pecado aí já não esteja, mas o odor permanece ainda e a água ficará
contaminada. Não despejeis vosso vinho fino em velhos tonéis que já contiveram
vinho ordinário: ficará estragado e o perdereis.
178. Embora me
entendais, almas predestinadas, falo mais abertamente. Não confieis o
ouro de vossa caridade, a prata de vossa pureza, as águas das graças celestes,
nem os vinhos de vossos méritos e virtudes a um saco roto, a um cofre velho e
quebrado, a um vaso conta minado e corrompido, como vós sois; porque
sereis pilhados pelos ladrões, isto é, os demônios, que buscam e espreitam,
noite e dia, o momento próprio para o ataque; estragareis, com o mau odor do
amor-próprio, da confiança própria e da vontade própria, tudo o que Deus vos dá
de mais puro.
Depositai,
derramai no seio e no coração de Maria todos os vossos tesouros, todas as
vossas graças e virtudes. Maria é um vaso espiritual, um
vaso honorífico, um vaso insigne de devoção: “vas spirituale, vas
honorabile, vas insigne devotionis”. Depois que aí se encerrou o
próprio Deus em pessoa, com todas as suas perfeições, este vaso tornou-se todo
espiritual, e a morada espiritual das almas mais espirituais. Tornou-se
honorável, e o trono de honra dos maiores príncipes da eternidade. Tornou-se
insigne na devoção e a morada dos mais ilustres em doçura, em graças e
virtudes. Tornou-se, enfim, rico como uma casa de ouro, forte como a
torre de Davi, puro como uma torre de marfim.
179. Oh! quão
feliz é o homem que tudo deu a Maria e que nela confia em tudo e por tudo. Ele
é todo de Maria e Maria é toda dele. Pode dizer afoitamente com David: “Haec
facta est mihi: Maria foi feita para mim” (Sl 118, 56); ou com o discípulo
amado: “Accepi eam in mea” (Jo 19, 27) – Eu a tomei como toda a minha riqueza;
ou com o próprio Jesus Cristo: “Omnia mea tua sunt, et omnia tua mea sunt:
Todas as minhas coisas são tuas, e as tuas são minhas” (Jo 17, 10).
180. Se algum
crítico, ao ler isto, achar que falo exageradamente e por excesso de devoção, infeliz
dele, pois não me compreende, ou por ser um homem carnal que não aprecia as
coisas do espírito, ou por ser do mundo que não pode receber o Espírito Santo,
ou por ser orgulhoso e crítico, que condena e despreza o que não entende. As
almas, porém, que não nasceram do sangue nem da vontade da carne (Jo 1, 13) mas
de Deus e de Maria, me compreendem e apreciam; e é para elas, afinal,
que eu escrevo.
181. Digo,
entretanto, para uns e outros, voltando ao assunto interrompido, que Maria
Santíssima, porque é a mais honesta e mais generosa de todas as puras
criaturas, não se deixa vencer jamais em amor e liberalidade. E por um
ovo, diz um santo homem ela dá um boi, isto é, por pouco que lhe demos ela dá
mais do que recebeu de Deus; e, por conseguinte, se uma alma se lhe entrega sem
reserva, se nela depositamos toda a nossa confiança, trabalhando de nosso lado
em adquirir as virtudes e domar as paixões.
182. Que os
fiéis servidores de Maria digam, pois, ousadamente com São João Damasceno: “Tendo
confiança em vós, ó Mãe de Deus, serei salvo; tendo vossa proteção, não
temerei; com vosso auxílio, combaterei os meus inimigos e os porei em fuga;
pois vossa devoção é uma arma de salvação que Deus dá a quem quer salvar:
Spem tuam habens, o Deipara, sevabor; defensionem tuam possidens, non
timebo; persequar inimicos meos et in fugam vertam, habens protectionem tuam et
auxilium tuum; nam tibi devotum esse est arma quaedam salutis quae Deus his dat
quos vult salvos fieri” (Sermo de Annunc.).
Capítulo VI
Figura bíblica desta
perfeita devoção: Rebeca e Jacó
183. De todas as
verdades que acabo de descrever em relação à Santíssima Virgem, o Espírito
Santo nos apresenta, na Sagrada Escritura (Gn 27), uma figura admirável na
história de Jacó, o qual recebeu a bênção de Isaac, graças à solicitude e
engenho de sua mãe Rebeca.
Ei-la tal
como conta o Espírito Santo. Em seguida ajuntarei a explicação.
Artigo I
Rebeca e Jacó
§ I. História de Jacó.
184. Esaú
vendera a Jacó, seu direito de primogenitura. Anos depois,
Rebeca, mãe dos dois irmãos, assegurou a Jacó, – que ela amava ternamente, – as
vantagens daquele privilégio, empregando, para isto, uma astúcia santa e cheia
de mistério. Pois Isaac, sentindo-se extremamente velho, quis, antes de
morrer, abençoar seus filhos, e, chamando Esaú, o preferido, ordenou-lhe que
fosse caçar algo para ele comer. Depois o abençoaria. Rebeca, prontamente, pôs
Jacó ao corrente do que se passava, e disse-lhe que fosse buscar dois cabritos
no rebanho. Assim que ele lhos trouxe, ela os preparou do modo que Isaac mais
gostava.
Em seguida,
com as vestes de Esaú, que ela guardava, vestiu Jacó e com as peles dos
cabritos envolveu-lhe o pescoço e as mãos, a fim de que Isaac, que não podia
ver, acreditasse, tateando-lhe as mãos, que fosse Esaú, embora ouvindo a voz de
Jacó. Isaac, com efeito, ficou surpreso ao ouvir a voz que ele reconhecia como
de Jacó, mas, fazendo-o aproximar-se e tateando-lhe os pelos que cobriam as
mãos do filho, murmurou: Em verdade a voz é de Jacó, mas as mãos são de Esaú.
E, convencido, comeu. Em seguida, ao beijar Jacó sentiu a fragrância das roupas
de Esaú, o que acabou por dissipar-lhe as dúvidas. Abençoou-o, então, e
desejou-lhe o orvalho do céu e a fecundidade da terra; estabeleceu-o senhor de
todos os seus irmãos, e terminou a bênção com estas palavras: “Aquele que te
amaldiçoar seja amaldiçoado, e aquele que te abençoar seja cumulado de
bênçãos”.
Apenas Isaac
acabara de falar, entrou Esaú trazendo um guisado da caça que abatera, e o
apresentou ao pai, pedindo-lhe que comesse e em seguida o abençoasse. O
santo patriarca ficou extremamente surpreendido, ao ficar ciente do engano,
mas, longe de retratar o que fizera, confirmou-o, pois reconhecia no fato,
evidentemente, o dedo de Deus. Então Esaú, como observa a Sagrada
Escritura, gritou com grande clamor, e acusando em altas vozes o embuste do seu
irmão, perguntou ao pai se ele não tinha outra bênção.
Neste ponto,
notam os Santos Padres, ele era a imagem dos que facilmente conciliam Deus com
o mundo, querendo gozar ao mesmo tempo as consolações do céu e as da terra. Isaac,
comovido pelos gritos de Esaú, abençoou-o, enfim, mas a bênção que lhe deu foi
uma bênção terrena, sujeitando-o ao irmão. Por isso Esaú concebeu um ódio tão
profundo contra Jacó que, para matá-lo, só esperava a morte do pai. E
Jacó não teria podido evitar a morte, se sua extremosa mãe Rebeca não o
protegesse com sua habilidade e os bons conselhos que lhe deu e que ele seguiu.
§ II. Interpretação da
história de Jacó.
185. Antes de
explicar esta história tão bela, é preciso notar que, conforme todos os Santos
Padres e intérpretes da Sagrada Escritura, Jacó é figura de Jesus Cristo
e dos predestinados, enquanto Esaú é figura dos réprobos; basta, apenas,
examinar a atitude de um e de outro para verificá-lo.
1º
Esaú, figura dos réprobos.
1º Esaú, o
mais velho, era forte e robusto de corpo, destro e habilidoso no manejo do arco
e na arte da caça.
2º Quase não
parava em casa, e, confiante em sua força e destreza, só trabalhava fora, ao ar
livre.
3º Pouco se
incomodava de agradar a sua mãe Rebeca, e nada fazia por ela.
4º Era guloso
e gostava tanto de satisfazer o paladar, que chegou a vender seu direito de
progenitura por um prato de lentilhas.
5º Estava,
como Caim, cheio de inveja de seu irmão Jacó, e o perseguia sem tréguas.
186. Eis a conduta dos réprobos, todos os dias:
1º Fiam-se
em sua força e indústria nos negócios temporais; são muito fortes, muito hábeis
e esclarecidos para as coisas da terra, mas extremamente fracos e ignorantes
nas coisas do céu: “In terrenis fortes, in caelestibus debiles”.
Por isso:
187. 2º Não
se demoram ou se demoram muito pouco em sua própria casa, quer dizer no seu
interior, que é a casa interior e essencial dada por Deus a cada homem para aí
morar, conforme seu exemplo, pois Deus mora sempre em sua casa. Os
réprobos não amam o retiro, nem a espiritualidade, nem a devoção interior
e chamam de espírito acanhados, carolas e selvagens aqueles que são espirituais
e retirados do mundo, e que trabalham mais no interior do que fora.
188. 3º Os
réprobos não se preocupam de modo algum com a devoção à Santíssima Virgem, a
Mãe dos predestinados. É verdade que não a odeiam formalmente,
fazem-lhe às vezes um elogio, dizem que a amam, praticam até alguma devoção em
sua honra, mas, de resto, não suportariam vê-la amada ternamente, porque não
têm para ela as ternuras de Jacó.
Acham motivo
de censura nas práticas de devoção, a que se entregam os bons filhos e servos
da Santíssima Virgem para obter sua afeição, na certeza de que esta devoção
lhes é necessária à salvação, e acham mais que, desde que não odeiam
formalmente a Santíssima Virgem, e que não desprezam abertamente sua devoção,
isso é bastante e já ganharam as boas graças da Santíssima Virgem e são seus
servos, ao recitarem ou resmungarem algumas orações em sua honra, sem a menor
ternura por ela nem emenda para eles.
189. 4º Esses
réprobos vendem seu direito de primogenitura, isto é, os gozos do paraíso, por
um prato de lentilhas, os prazeres da terra. Riem, bebem, comem,
divertem-se, jogam, dançam, etc..., sem a mínima preocupação, como Esaú, de se
tornarem dignos da bênção do Pai celeste. Em três palavras, eles só
pensam na terra, só amam a terra, só falam e agem pela terra e pelos prazeres
terrenos, vendendo, por um instante de prazer, por uma vã fumaça de
honra, e por um pedaço de matéria amarela ou branca, a graça batismal, sua
veste de inocência, sua celestial herança.
190. 5º Os
réprobos, finalmente, em segredo ou às claras, odeiam e perseguem diariamente
os predestinados. Prejudicam-nos quanto podem, desprezam-nos,
roubam-nos, enganam-nos, empobrecem-nos, expulsam-nos, reduzem-nos a pó;
enquanto eles mesmos fazem fortuna, gozam seus prazeres, vivem em situação
esplêndida, enriquecem, se engrandecem e levam vida folgada.
2º
Jacó, figura dos predestinados.
191. 1º Jacó,
o caçula, era de compleição franzina, meigo e sossegado. Permanecia em casa o
mais possível, para ganhar as graças de sua Mãe Rebeca, que o amava ternamente.
Se saía de casa, não o fazia por vontade própria, nem por confiança em sua
própria habilidade, mas para obedecer a sua mãe.
192. 2º Amava
e honrava sua mãe: por isso ficava em casa junto dela. Seu maior
contentamento era vê-la; evitava tudo que pudesse desagradar-lhe e fazia tudo
que imaginava agradar-lhe. Tudo isso concorria para aumentar em Rebeca o amor
que dedicava ao filho.
193. 3º Em
todas as coisas ele era submisso a sua mãe, obedecia-lhe inteiramente
em tudo, com obediência pronta, sem tardanças, e amorosa, sem queixas; ao menor
sinal da vontade materna, o pequeno Jacó corria e trabalhava. Acreditava
piamente, sem discutir, em tudo que a mãe lhe dizia: por exemplo,
quando Rebeca o mandou buscar os dois cabritos, e ele os trouxe a fim de ela os
preparar para Isaac, Jacó não replicou nem observou que bastava um para
satisfazer o apetite de um só homem, mas, sem discernir, fez exatamente como
ela mandou.
194. 4º Ele
depositava uma confiança sem limites em sua querida mãe; como não
contava absolutamente com sua própria experiência, apoiava-se unicamente na
proteção e nos desvelos maternos. Chamava por ela em todas as suas
necessidades e consultava-a em todas as suas dúvidas: por exemplo,
quando lhe perguntou se, em vez da bênção, não receberia a maldição de seu pai,
creu e confiou na resposta que ela lhe deu de que não tomaria sobre si a
maldição.
195. 5º Ele
imitava, enfim, na medida de sua capacidade, as virtudes que via em sua mãe;
e parece que uma das razões por que ele permanecia em casa, tão sedentário, é
que procurava imitar sua virtuosa mãe, e afastar-se de más companhias, que
corrompem os costumes. Por tal motivo tornou-se digno de receber a dupla bênção
de seu querido pai.
196.
Eis também a conduta diária dos predestinados:
1º Vivem
em casa, sedentariamente, com sua mãe, quer dizer, amam o recolhimento, são
interiores, e se aplicam à oração, mas conforme o exemplo e a companhia de sua
Mãe, a Santíssima Virgem, cuja glória está toda no interior e que, durante a
vida inteira, tanto amou o retiro e a oração.
É verdade
que aparecem às vezes fora, no mundo; fazem-no, porém, em obediência à
vontade de Deus e de sua querida Mãe, para cumprir os deveres de seu estado.
Por grandes coisas que façam no exterior e que apareçam, preferem muito mais as
que se fazem no interior, em companhia da Santíssima Virgem, porque aí executam
a grande obra de sua perfeição, ao lado da qual todas as outras são como
brinquedos de criança.
Por isso,
enquanto que seus irmãos e irmãs trabalham muitas vezes para o exterior com
mais entusiasmo, habilidade e sucesso, recebendo os louros e aprovações do
mundo, eles sabem, pela luz do Espírito Santo, que há muito mais glória, bem e
prazer em permanecer oculto no reconhecimento com Jesus Cristo, seu modelo,
numa submissão inteira e perfeita a sua Mãe, do que em realizar, por si
próprio, maravilhas naturais e da graça no mundo, como tantos Esaús e réprobos.
“Gloria et divitiae in domo eius” Sl 111, 3) – a glória para Deus
e as riquezas para os homens encontram-se na casa de Maria.
Senhor
Jesus, quão amáveis são vossos tabernáculos! O pardal encontrou uma casa para
se alojar, e a rola, um ninho, onde abrigar seus filhotes. Oh! como é feliz o
homem que mora na casa de Maria, na qual fizestes, primeiro, a vossa morada! É
nesta casa de predestinados que ele de vós somente pede socorro, e em seu
coração dispôs subidas e degraus de todas as virtudes, para elevar-se à
perfeição neste vale de lágrimas. “Quam dilecta tabernacula...” (Sl 83).
197. 2º Eles
amam ternamente e honram em verdade a Santíssima Virgem, como sua boa Mãe e
Senhora. Amam-na não só com a boca, mas verdadeiramente; honram-na não
só no exterior, mas no fundo do coração; evitam, como Jacó, tudo que pode
desagradar-lhe, e praticam com fervor tudo que crêem poder adquirir-lhes sua
benevolência. Trazem-lhe e lhe entregam não só dois cabritos como Jacó a
Rebeca, mas seu corpo e sua alma, com tudo que do corpo e da alma
depende, de que são figura os dois cabritos de Jacó,
1º para que
Ela os receba como um dom que lhe pertence;
2º para que os
sacrifique e faça morrer ao pecado e a si próprios, escorchado-os e
despojando-os da própria pele de seu amor-próprio, e para agradar, por este meio,
a Jesus, seu filho, que não quer para amigos e discípulos, senão aqueles
que estiverem mortos a si mesmos;
3º para que os
prepare ao gosto do Pai celeste, e para servir à sua maior glória, que Ela
conhece melhor que nenhuma outra criatura;
4º para que,
por seus cuidados e intercessões, este corpo e esta alma,
purificados de toda mancha, bem mortos, bem despojados e bem preparados, sejam
um manjar delicado, digno do paladar e da bênção do Pai celeste. Não é o
que farão as pessoas predestinadas, que apreciarão e praticarão a consagração
perfeita a Jesus Cristo pelas mãos de Maria, como lhes ensinamos, para
testemunhar a Jesus e Maria um amor efetivo e corajoso?
Os réprobos
dizem que amam a Jesus, que honram Maria, mas não com sua substância76, com os
seus haveres, ao ponto de lhes sacrificar seu corpo com os sentidos, sua alma
com todas as paixões, como fazem os predestinados.
76) Cf. Prov
3, 9: “Honora Dominum de tua substantia” – Honra o Senhor com os teus haveres.
198. 3º Eles
são submissos e obedientes à Santíssima Virgem, como a sua boa Mãe a exemplo de
Jesus Cristo, que, dos trinta e três anos que viveu sobre a terra,
dedicou trinta a glorificar a Deus seu Pai, por uma perfeita e inteira
submissão a sua Mãe Santíssima. A ela obedecem, seguindo com exatidão
os seus conselhos, como o pequeno Jacó seguia os de sua mãe, que lhe diz: “Acquiesce
consiliis meis” (Gn 27, 8) – Meu filho, segue meus conselhos; aos quais a
Santíssima Virgem diz: “Quodcumque dixerit vobis facite” – Fazei
tudo o que ele vos disser (Jo 2, 5).
Por ter
obedecido a sua mãe, Jacó recebeu a bênção, como por milagre, embora por
direito natural não devesse recebê-la; porque os servos nas bodas de Caná seguiram
o conselho da Santíssima Virgem, foram honrados com o primeiro milagre de Jesus
Cristo, que nessa ocasião, a pedido de sua Mãe, converteu a água em
vinho. Assim, todos aqueles que até ao fim dos séculos receberem a bênção
do Pai celeste, e forem honrados com as maravilhas de Deus, só receberão estas
graças em conseqüência de sua perfeita obediência a Maria; os Esaús, ao
contrário, perderão sua bênção, por falta de submissão à Santíssima Virgem.
199. 4º Os
predestinados têm uma grande confiança na bondade e no poder da Santíssima
Virgem; reclamam sem cessar o seu socorro; olham-na como a estrela
polar guiando-os a seguro porto; comunicam-lhe, com o coração aberto, suas
penas e suas necessidades; acolhem-se à sua misericórdia e doçura para, por sua
intercessão, alcançar o perdão de seus pecados, ou para gozar de seus maternais
carinhos em suas aflições e contrariedades.
Atiram-se
até, escondem-se e se perdem dum modo admirável em seu regaço amoroso e
virginal, para aí ficarem abrasados de amor, para aí se purificarem das menores
manchas, e para aí encontrarem plenamente a Jesus, que aí reside como
no mais glorioso dos tronos. Oh! que felicidade! “Não creais, diz o abade
Guerrico, que seja maior felicidade habitar o seio de Abraão que o seio de
Maria, pois neste colocou o Senhor o seu trono: Ne credideris maioris esse
felicitatis habitare in sinu Abrahae quam in sinu Mariae, cum in eo Dominus
possuerit thronum suum”.77
77) Sermo 1
in Assumptione, n. 4.
Os réprobos,
ao contrário, põem toda a confiança em si próprios, só comem, como o filho
pródigo, o que comem os porcos; como vermes, só se alimentam de terra; e porque
amam somente as coisas visíveis e passageiras, como os mundanos, não
apareciam as doçuras e suavidades do seio de Maria. Não sentem aquele
apoio e aquela confiança que os predestinados sentem pela Santíssima Virgem,
sua boa Mãe. Amam miseravelmente sua fome exterior, como diz São Gregório78,
porque não querem provar a suavidade que está preparada no próprio íntimo deles
e no íntimo de Jesus e de Maria.
78) “Amamus
foris miseri famem nostram” (Homil. 36 in Evangel.).
200. 5º Finalmente,
os predestinados mantêm-se nos caminhos da Santíssima Virgem, isto é,
imitam-na, e nisto eles são verdadeiramente felizes e devotos, trazendo assim o
sinal infalível de sua predestinação. Esta boa Mãe lhes diz: “Beati
qui custodiunt vias meas” (Prov 8, 32) – Bem-aventurados os que praticam
minhas virtudes, e caminham sobre as pegadas de minha vida, com o socorro da
divina graça.
Eles são
felizes neste mundo, durante sua vida, devido à abundância de graças e de
doçuras que eu lhes comunico de minha plenitude e com muito mais abundância que
aos outros que não me imitam tão esforçadamente; eles
são felizes em sua morte, que é doce e tranqüila, e na qual eu os assisto, para
os conduzir às alegrias da eternidade; serão finalmente, felizes na eternidade,
porque jamais se perdeu algum dos meus servos, que durante a vida tenha imitado
fielmente as minhas virtudes.
Os réprobos,
ao contrário, são infelizes durante a vida, em sua morte e na eternidade,
porque não imitam a Santíssima Virgem em suas virtudes, contentando-se com
pertencer a alguma de suas confrarias, com recitar uma ou outra oração em sua
honra ou fazer qualquer devoção exterior.
Ó Virgem
Santíssima, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles – eu o
repito com transportes de coração – quão felizes são aqueles que, sem se deixar
seduzir por uma falsa devoção, guardam fielmente vossos caminhos, vossos
conselhos e vossas ordens! Quão infelizes, porém, e malditos, aqueles que,
abusando de vossa devoção, não guardam os mandamentos de vosso Filho! “Maledicti
omnes qui declinant a mandatis tuis” – Malditos os que se afastam de
teus mandamentos (Sl 118, 21).
Artigo II
A Santíssima Virgem e
os seus escravos por amor
201. Eis, em seguida,
os caridosos deveres que a Santíssima Virgem cumpre como a melhor das mães,
para com seus fiéis servos, que a ela se deram como indiquei, e conforme a
figura de Jacó.
§ I. Ela os ama.
“Ego
diligentes me diligo” – Eu amo aqueles que me amam” (Prov 8, 17).
Ela os ama;
1º porque é
sua verdadeira Mãe; ora, uma mãe ama sempre seu filho, o fruto de suas
entranhas;
2º ela os
ama por reconhecimento, pois que eles efetivamente a amam como sua boa Mãe;
3º ela os
ama, porque, sendo predestinados, Deus os ama: “Iacob dilexi, Esau autem odio
habui – Amei Jacó, porém aborreci Esaú” (Rm 9, 13);
4º ela os
ama porque eles se lhe consagraram, e porque são sua partilha e herança: “In
Israel hereditare” (Ecli 24, 13).
202. Ela
os ama ternamente, e com mais ternura do que todas as mães juntas.
Acumulai, se puderdes, num só coração materno e por um filho único, todo o amor
natural que todas as mães deste mundo têm por seus filhos: sem dúvida essa mãe
amaria muito esse filho. É verdade, entretanto, que Maria ama ainda mais
ternamente seus filhos do que aquela mãe amaria o seu. Ela não os ama somente
com afeição, mas também com eficácia. Seu amor por eles é ativo e
efetivo, como aquele de Rebeca por Jacob, e muito mais. Eis o que esta boa Mãe,
da qual Rebeca era apenas a figura, faz com o fito de alcançar, para seus
filhos, a bênção do Pai celestial.
203. 1º
Ela espreita, como Rebeca, as ocasiões favoráveis de lhes proporcionar algum
bem, de os engrandecer, de os enriquecer. Ela vê claramente em Deus todos
os bens e males, as boas e más fortunas, as bênçãos e as maldições divinas, e
por isso, já de longe, dispõe as coisas para isentar seus servos de todo mal e
cumulá-los de todos os bens; de sorte que, se há um bom proveito para
alcançar em Deus, pela fidelidade duma criatura em algum alto emprego, é certo
que Maria o conseguirá para algum de seus filhos, e lhe dará a graça de chegar
ao fim com fidelidade: “Ipsa procurat negotia nostra”, diz um santo.
204. 2º Ela
lhes dá bons conselhos, como Rebeca a Jacó: “Fili mi, acquiesce
consiliis meis” – Meu filho, segue meus conselhos” (Gn 27, 8). E,
entre outros conselhos, ela lhes sugere levar-lhe dois cabritos, isto é, seu
corpo e sua alma, de lhos consagrar para que ela prepare um manjar agradável a
Deus, e de fazer tudo que Jesus Cristo, seu Filho, nos ensinou pela palavra e
pelo exemplo. Se não é diretamente que lhes dá seus conselhos, fá-lo pelo
ministério dos anjos, para os quais constitui o maior prazer e a maior honra
obedecer à menor de suas ordens para descer à terra e auxiliar seus fiéis
servos.
205. 3º Quando
lhe levamos e consagramos nosso corpo e nossa alma com tudo que deles depende,
sem nada excetuar, que faz esta boa Mãe? O mesmo que fez, outrora, Rebeca aos
dois cabritos que Jacó lhe trouxe:
1º mata-os,
tirando-lhes a vida do velho Adão;
2º
escorcha-os e despoja da pele natural, das inclinações naturais, do amor
próprio, da vontade própria e de todo apego à criatura;
3º
purifica-os de toda mancha, sujeira e pecado;
4º
prepara-os ao gosto de Deus e para sua maior glória. Ninguém como ela
conhece perfeitamente este gosto divino e esta maior glória do Altíssimo,
e, portanto, só ela pode, sem enganar-se aprontar e preparar nosso corpo e
nossa alma de acordo com esse gosto infinitamente elevado e essa glória
infinitamente oculta.
206. 4º Esta
boa Mãe, depois de receber a oferenda perfeita que lhe fizemos de nós mesmos e
de nossos próprios méritos e satisfações, pela devoção de que falei, depois de
nos ter despojado de nossos antigos hábitos, limpa-nos e nos torna dignos de
aparecer diante de nosso Pai celeste.
1º Ela nos
cobre com as vestes limpas, novas, preciosas e perfumadas de Esaú, o
primogênito, isto é, de Jesus Cristo seu Filho, daquelas vestes que ela
conserva em sua casa, ou, por outra, em seu poder, pois que é a
tesoureira, a dispensadora universal dos méritos e virtudes de seu Filho Jesus
Cristo, dons que ela dispensa e comunica a quem quer, quando quer, como quer, e
em quanto quer, como já vimos acima (cf. nn. 25 e 141).
2º Ela
rodeia o pescoço e as mãos de seus servos com o pelo dos carneiros mortos e
escorchados, quer dizer, ela os reveste dos méritos e do valor de suas próprias
ações. Ela mata e mortifica, em verdade, tudo que eles têm de impuro e imperfeito
em suas pessoas; mas não perde nem dissipa o bem que neles a graça já realizou;
pelo contrário, guarda-o e aumenta-o para lhes ornar e fortalecer o pescoço e
as mãos, isto é, para que eles tenham força para carregar o jugo do Senhor, que
se carrega ao pescoço, e para fazerem grandes coisas que redundem na glória de
Deus e na salvação de seus irmãos.
3º Ela põe
um novo perfume e uma nova graça nessas vestes e ornamentos, pelo contato de
suas próprias vestes: seus méritos e suas virtudes, que ela, ao morrer, lhes
legou em testamento, como diz uma santa religiosa do século 17, morta em odor
de santidade, e que o soube por revelação; de modo que todos os seus
servidores, seus fiéis servos e escravos ficam duplamente vestidos: com as
vestes dela e com as de seu Filho: “Omnes domestici eius vestiti sunt
duplicibus” (Prov 31, 21). Por isso eles não têm que recear o frio de Jesus
Cristo, branco como a neve, que os réprobos, completamente nus e despojados dos
méritos de Jesus Cristo e da Santíssima Virgem, não poderão suportar.
207. 5º
Ela consegue-lhes, enfim, a bênção do Pai celeste, se bem que
eles sejam os segundos, os filhos adotivos, e, portanto, não devessem
recebê-la. Com essas roupas novas, preciosas e odorosas, e com seu corpo e alma
bem preparados e dispostos, eles se aproximam confiantes do leito de repouso do
Pai celeste. Este os ouve e os reconhece pela voz, a voz do pecador; toca-lhes
as mãos cobertas de pêlos; aspira o perfume que de suas vestes se desprende;
come alegremente o que Maria lhe preparou; e neles reconhecendo os méritos e o
bom odor de seu Filho e de sua Mãe Santíssima:
1º dá-lhes
sua dupla bênção, bênção do orvalho do céu: “De rore caeli” (Gn
27, 28), isto é, da graça divina que é a semente da glória: “Benedixit nos in
omni benedictione spirituali in Christo Iesu” (Ef 1, 3: Deus nos abençoou com
toda a bênção espiritual em Cristo Jesus); bênção da fertilidade da terra:
“De pinguetudine terrae” (Gn 27, 28), em outras palavras, que este bom Pai lhes
dá seu pão cotidiano e uma abundância suficiente de bens deste mundo;
2º fá-los
senhores de seus outros irmãos, os reprovados, embora esta primazia nem sempre
transpareça neste mundo que passa num instante, e no qual dominam muitas vezes
os reprovados: “Peccatores effabuntur et gloriabuntur... (Sl 93, 3, 4), Vidi
impium superexaltatum e elevatum” (Sl 36, 35); essa primazia é, no entanto,
verdadeira e será manifestada por toda a eternidade, no outro mundo, onde os
justos, como diz o Espírito Santo, dominarão e comandarão as nações:
“Dominabuntur populis” (Sb 3, 8);
3º Sua
majestade, não contente de abençoá-los em suas pessoas e em seus bens, abençoa
ainda todos os que eles abençoarem, e amaldiçoa todos os que os amaldiçoarem e
perseguirem.
§ II. Ela os mantém.
208. O segundo
dever de caridade que a Santíssima Virgem exerce para com seus fiéis servos é
provê-los de tudo para o corpo e para a alma. Ela lhes fornece as vestes
duplas, como acabamos de ver; dá-lhes de comer os manjares mais finos da mesa
de Deus; dá-lhes o pão da vida que ela formou: “A generationibus meis
implemini” (Ecli 24, 26): “Meus queridos filhos, lhes diz ela, sob o nome
da Sabedoria, enchei-vos de meus frutos, isto é, de Jesus, o fruto de vida que
eu pus no mundo para vós. – “Venite, comedite panem meum et bibite
vinum quod miscui vobis” (Prov 9, 5); “comedite et bibite, et inebriamini,
carissimi” (Cant 5, 1): Vinde, lhes repete, comei do meu pão, que é Jesus, e
bebei do vinho de seu amor, que para vós preparei com o leite de meus seios. E
como é a tesoureira e a dispensadora dos dons e das graças do Altíssimo, ela
toma uma boa porção, a melhor, para alimentar e sustentar seus filhos e servos.
Eles são fortalecidos com o pão vivo, embriagados com o vinho que gera
virgens (cf. Zc 9, 17); são levados ao seio: “ad ubera portamini” (Is
66, 12); e têm tanta facilidade em carregar o jugo de Jesus Cristo, que
quase não lhe sentem o peso, graças ao óleo da devoção com que ela o faz
apodrecer: “Iugum eorum computrescet a facie olei” (Is 10, 27).
§ III. Ela os conduz.
209. O terceiro
bem que a Santíssima Virgem faz a seus fiéis servos é conduzi-los e dirigi-los
conforme a vontade de seu Filho. Rebeca conduzia o pequeno Jacó e de vez em
quando lhe dava bons conselhos, e deu-lhos tanto para ele atrair a bênção de
Isaac, como para subtrair-se à fúria de Esaú. Maria, a estrela do mar,
guia todos os seus fiéis servos a bom porto; mostra-lhes os caminhos da vida
eterna; desvia-os dos passos perigosos; leva-os pela mão nas sendas da justiça;
sustém-nos quando estão prestes a cair; levanta-os quando caíram; repreende-os,
como mãe caridosa, quando comentem alguma falta; e, até, às vezes, os castiga
amorosamente.
Um filho que
obedece a Maria, pode acaso errar o caminho que leva à eternidade? “Ipsam
sequens, non devias: Seguindo-a, não vos extraviareis”, diz São
Bernardo. Não temais que um verdadeiro filho de Maria se deixe enganar pelo
demônio e venha a cair em alguma heresia formal. Onde se manifesta a mão
condutora de Maria, aí não se encontram nem o espírito maligno com suas
ilusões, nem os hereges com seus sofismas: “Ipsa tenente, non corruis”.79
79) Palavras
de São Bernardo, citadas e comentadas mais acima, n. 174.
§ IV. Ela os defende e
protege.
210. O
quarto favor que a Santíssima Virgem presta a seus filhos e fiéis servos é
defendê-los e protegê-los de seus inimigos. Rebeca, por seus cuidados e
por sua habilidade livrou Jacó dos perigos que o ameaçavam, e particularmente
da morte que lhe jurara Esaú, e que, no auge da raiva e inveja que o dominavam,
ele teria levado a termo, como outrora Caim a seu irmão Abel.
Maria, a Mãe
misericordiosa dos predestinados, abriga-os sob as asas de sua proteção, como
uma galinha aos pintinhos. Ela lhes fala, abaixa-se até a
eles, é condescendente para com suas fraquezas, protege-os contra as garras do
gavião e do abutre; acompanha-os como um exército em linha de batalha: “ut
castrorum acies ordinata” (Ct 6, 3). Pode um homem, garantido por um exército
de cem mil soldados, ter receio de seus inimigos? Menos ainda há de recear um
servo fiel de Maria, rodeado que está da proteção e força de sua Mãe
Santíssima. Esta Mãe e Princesa poderosa enviaria antes batalhões de milhares
de anjos em socorro de um só de seus servos, para que se não dissesse que um
servo fiel de Maria, que a ela se confiou, sucumbiu à malícia, ao número e à
força do inimigo.
§ V. Ela intercede por
eles.
211. O
quinto, enfim, e o maior bem, que a amabilíssima Maria proporciona a seus fiéis
devotos, é interceder por eles junto de seu Filho, apaziguá-lo por suas preces,
uni-los a ele por um forte elo, e para ele os conservar.
Rebeca
mandou a Jacó que se aproximasse do leito de Isaac; e o ancião tateou as mãos e
os braços do filho, abraçou-o e beijou-o com alegria, mostrando-se contente e
satisfeito com o acepipe que Jacó lhe apresentava. E ao aspirar com extrema
satisfação o perfume que se exalava das vestes de Esaú, exclamou: “Ecce odor
filii mei sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus: Eis que o cheiro
de meu filho é como o cheiro de um campo florido que o Senhor abençoou”
(Gn 27, 27). Este campo florido, cujo odor encanta o coração do pai,
outro não é que o odor das virtudes e dos méritos de Maria, que é um campo
cheio de graça, no qual Deus Pai semeou, qual grão de trigo dos eleitos, o seu
Filho único.
Oh!
bem-vindo é, junto de Jesus Cristo, Pai do futuro século, um filho que rescende
o bom odor de Maria. E quão pronta e perfeitamente lhe fica unido, já o
demonstramos longamente.
212. Além
disso, depois de cumular de favores seus filhos e servos fiéis, Maria
Santíssima lhes obtém a bênção do Pai celestial e a união com Jesus Cristo, e,
mais, conserva-os em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles. Ela os guarda e
por eles vela constantemente, para que não percam a graça de Deus e não caiam
nas armadilhas do inimigo: “In plenitudine sanctos detinet: Detém os santos em
sua plenitude” 80, e ajuda-os a perseverar até ao fim, como já vimos.
80) Palavras
de São Boaventura já citadas e comentadas (n. 174).
Aí está a
explicação desta grande e antiga figura da predestinação e da condenação,
figura tão desconhecida e tão cheia de mistérios.
Capítulo VII
Efeitos maravilhosos
que esta devoção produz numa alma que lhe é fiel
213. Meu querido
irmão, convencei-vos de que, se vos tornardes fiel às práticas interiores e
exteriores desta devoção, que vos indico em seguida:
Artigo I
Conhecimento e
desprezo de si mesmo
1º Pela
luz que o Espírito Santo vos dará por intermédio de Maria, sua querida esposa,
conhecereis vosso fundo mau, vossa corrupção e vossa incapacidade para todo
bem, e, em conseqüência deste conhecimento, vos desprezareis, e será com horror
que pensareis em vós mesmos. Considerar-vos-eis como uma lesma
asquerosa que tudo estraga com sua baba, como um sapo repugnante que tudo
envenena com sua peçonha, ou como a serpente traiçoeira que só busca enganar. A
humilde Maria vos dará, enfim, parte de sua profunda humildade, com que vos
desprezareis a vós mesmo, sem desprezar pessoa alguma, e gostareis até de ser
desprezado.
Artigo II
Participação da fé de
Maria
214. 2º A
Santíssima Virgem vos dará uma parte na fé, a maior que já houve na terra,
maior que a de todos os patriarcas, profetas, apóstolos e todos os santos.
Agora, reinando nos céus, ela já não tem esta fé, pois vê claramente todas as
coisas em Deus, pela luz da glória. Com assentimento do Altíssimo, ela,
entretanto, não a perdeu ao entrar na glória; guardou-a para seus fiéis servos
e servas na Igreja militante.
Quanto mais,
portanto, ganhardes a benevolência desta Princesa e Virgem fiel, tanto mais
profunda fé tereis em toda a vossa conduta: uma fé pura,
que vos levará à despreocupação por tudo que é sensível e extraordinário; uma
fé viva e animada pela caridade que fará com que vossas ações sejam motivadas
por puro amor; uma fé firme e inquebrantável como um rochedo, que vos manterá
firme e contente no meio das tempestades e tormentas; uma fé ativa e penetrante
que, semelhante a uma chave misteriosa, vos dará entrada em todos os
mistérios de Jesus Cristo, nos novíssimos do homem e no coração do próprio
Deus; fé corajosa que vos fará empreender sem hesitações, e realizar
grandes coisas para Deus e a salvação das almas; fé, finalmente, que será vosso
fanal luminoso, vossa via divina, vosso tesouro escondido da divina Sabedoria e
vossa arma invencível, da qual vos servireis para aclarar os que jazem nas
trevas e nas sombras da morte, para abrasar os tíbios e os que necessitam do
ouro candente da caridade, para dar vida aos que estão mortos pelo pecado, para
tocar e comover, por vossas palavras doces e poderosas, os corações de mármore
e derrubar os cedros do Líbano, e para, enfim, resistir ao demônio e a
todos os inimigos da salvação.
Artigo III
Graça do puro amor
215. 3º
Esta Mãe do amor formoso (Ecli 24, 24) aliviará vosso coração de
todo escrúpulo e de todo temor servil; ela o abrirá e alargará para correr pelo
caminho dos mandamentos de seu Filho (cf. Sl 118, 32), com a santa
liberdade dos filhos de Deus, e para nele introduzir o puro amor, de que ela
possui o tesouro; de tal modo que não mais vos conduzireis, como o fizestes até
aqui, pelo receio ao Deus de caridade, mas pelo puro amor, unicamente.
Passareis a
olhá-lo como vosso bondoso Pai, tratando de agradar-lhe incessantemente; com ele
conversareis confidentemente, à semelhança de um filho com seu pai. Se, por
acaso, o ofenderdes, humilhar-vos-eis em continente diante dele, pedir-lhe-eis
perdão humildemente, lhe estendereis simplesmente a mão, e vos levantareis
amorosamente, sem perturbação nem inquietação, se sem desfalecimentos
continuareis a caminhar para ele.
Artigo IV
Grande confiança em
Deus e em Maria
216. 4º A
Santíssima Virgem vos encherá de grande confiança em Deus e nela:
1º porque não
vos aproximareis mais de Jesus Cristo por vós mesmo, mas sempre por intermédio
desta bondosa Mãe;
2º porque,
tendo lhe dado todos os vossos méritos, graças e satisfações, para que deles
disponha à sua vontade, ela vos comunicará suas virtudes e vos revestirá de
seus méritos, de sorte que podereis dizer confiantemente a Deus: “Eis
Maria, vossa serva: faça-se em mim conforme a vossa palavra: Ecce
ancilla Domini; Fiat mihi secundum verbum tuum” (Lc 1, 38);
3º porque, desde
que vos destes a ela inteiramente, de corpo e alma, ela, que é liberal com os
liberais, e mais liberal que os próprios liberais, dar-se-á a vós em troca, e
isto de um modo maravilhoso, mas verdadeiro; assim podereis dizer-lhe
ousadamente: “Tuus sum ego, salvum me fac! – Eu vos pertenço,
Santíssima Virgem, salvai-me!” (Sl 118, 94) ou, como já disse (cf. nº
179), com o discípulo amado: “Accepi te in mea” – eu vos tomei,
Mãe Santíssima, como todo o meu bem. Podereis ainda dizer com São
Boaventura: “Ecce Domina salvatrix mea, fiducialiter agam, et non timebo,
quia fortitudo mea, et laus mea in Domino es tu...”81 e em outro lugar: “Tuus
totus ego sum, et omnia mea tua sunt; o Virgo gloriosa, super omnia benedicta,
ponam te ut signaculum super cor meum, quia fortis est ut mors dilectio tua82
– Minha querida Senhora e Salvadora, agirei com confiança e não
temerei porque sois minha força e meu louvor no Senhor... Sou
todo vosso, e tudo que tenho vos pertence; ó gloriosa Virgem, bendita sobre
todas as coisas criadas, que eu vos ponha como uma marca sobre meu coração,
pois vossa dileção é forte como a morte!”
Podereis
dizer a Deus com os sentimentos do profeta: “Domine, non est exaltatum cor
meum, neque elati sunt oculi mei; neque ambulavi in magnis, neque in mirabilibus
super me; si non humiliter sentiebam, sed exaltavi animam meam; sicut
ablactatus est super matre sua, ita retributio in anima mea (Sl 130, 1-2) –
Senhor, nem meu coração nem meus olhos têm motivo para se elevar e
ensoberbecer, nem de buscar coisas grandes e maravilhosas; e mesmo assim, ainda
não sou humilde; mas elevei e encorajei minha alma pela confiança; sou como uma
criança, afastada dos prazeres da terra e apoiada ao seio de minha mãe; e é
neste seio que sou cumulado de bens.
4º O que aumenta
ainda vossa confiança nela é que, tendo lhe dado em depósito tudo o que tendes
de bom para dar ou guardar, confiareis menos em vós e muito mais nela, que é
vosso tesouro. Oh! que confiança e consolação para uma alma poder chamar
também seu o tesouro de Deus, onde Deus depositou o que tem de mais precioso!
“Ipsa est thesaurus Domini – Ela é, diz um santo, o tesouro do
Senhor”.83
81) Psalter. maius B. V., Cant. instar Is 12, 2.
82) Psalter.
Maius B. V., Cant. instar Ex 15.
83) Idiota
(In contemplatione B. M. V.).
Artigo V
Comunicação da alma e
do espírito de Maria
217. 5º A
alma da Santíssima Virgem se comunicará a vós para glorificar o Senhor; seu
espírito tomará o lugar do vosso para regozijar-se em Deus, contanto que
pratiqueis fielmente esta devoção. “Sit in singulis anima Mariae, ut
magnificet Dominum; sit in singulis spiritus Mariae, ut exultet in Deo 84
– Que a alma de Maria esteja em cada um para aí glorificar o Senhor; que
o espírito de Maria esteja em cada um para aí regozijar-se em Deus”.
Ah! quando
virá este tempo feliz em que Maria será estabelecida Senhora e Soberana nos
corações, para submetê-los plenamente ao império de seu grande e único Jesus?
Quando chegará o dia em que as almas respirarão Maria, como o corpo respira o ar?
Então, coisas maravilhosas acontecerão neste mundo, onde o Espírito Santo,
encontrando sua querida Esposa como que reproduzida nas almas, a
elas descerá abundantemente, enchendo-as de seus dons, particularmente do dom
da sabedoria, a fim de operar maravilhas de graça.
Meu caro
irmão, quando chegará esse tempo feliz, esse século de Maria, em que inúmeras
almas escolhidas, perdendo-se no abismo de seu interior, se tornarão cópias
vivas de Maria, para amar e glorificar Jesus Cristo? Esse tempo só chegará
quando se conhecer e praticar a devoção que ensino, “Ut adveniat regnum
tuum, adveniat regnum Mariae”.
84) S. Ambrósio (Expositio in Lc 1. III, n. 26).
Artigo VI
Transformação das
almas em Maria à imagem de Jesus Cristo
218. 6º Se
Maria, que é a árvore da vida, for bem cultivada em nossa alma pela fidelidade
às práticas desta devoção, ela dará fruto em seu tempo; e seu fruto não é outro
senão Jesus Cristo. Vejo tantos devotos e devotas que buscam Jesus Cristo,
estes por uma via e uma prática, aqueles por outra; e muitas vezes depois de
muito labutar durante a noite, podem dizer: “Per totam noctem laborantes,
nihi cepimus – Trabalhamos a noite inteira, nada apanhamos”
(Lc 5, 5).
E pode-se
responder-lhes: “Laborastis multum, et intulistis parum – muito
trabalhastes e pouco ganhastes”.85 Jesus Cristo está ainda muito fraco
em vós. Mas, pelo caminho imaculado de Maria e por esta prática divina que
ensino, trabalha-se durante o dia, trabalha-se num lugar santo, trabalha-se
pouco. Em Maria não há noite, pois ela jamais pecou, nem teve sequer a
sombra dum pecado. Maria é um lugar santo, o Santo dos santos, em que se formam
e modelam os santos.
85) Ag 1, 6
(O texto exato diz “Seminastis multum...”).
219. Notai, se
vos apraz, que eu digo que os santos são moldados por Maria. Há
grande diferença entre executar uma figura em relevo, a martelo e a cinzel, e
executá-la por molde. Os escultores e estatuários têm de esforçar-se muito para
fazer uma figura da primeira maneira, e gastam muito tempo; mas, da segunda
maneira, trabalham pouco e terminam em pouco tempo. S. Agostinho chama a
Santíssima Virgem “forma Dei”, o molde de Deus. “Si formam Dei te appellem,
digna exsistis”85: o molde próprio para formar e moldar deuses. Aquele que
é lançado no molde divino fica em breve formado e moldado em Jesus Cristo, e
Jesus Cristo nele: com pouca despesa e em pouco tempo, ele se tornará deus,
pois foi lançado no mesmo molde que formou um Deus.
85) Sermo
208 (inter opera S. Augustini): “Sois digna de ser chamada
o molde de Deus”.
220. Parece-me
que posso muito bem comparar esses diretores e pessoas devotas que pretendem
formar Jesus Cristo em si mesmos ou nos outros, por meio de práticas diferentes
destas, a escultores que, depositando toda a confiança na própria perícia,
conhecimento e arte, dão uma infinidade de marteladas e embotam o cinzel numa
pedra dura, ou numa madeira áspera, para fazer a imagem de Jesus Cristo; e
às vezes não conseguem dar expressão natural a Jesus Cristo, ou por falta de
conhecimentos ou devido a algum golpe desastrado que prejudica toda a obra.
Aqueles,
porém, que abraçam este segredo da graça que lhes apresento, eu os comparo a
fundidores e moldadores que, tendo encontrado o belo molde de Maria, no qual
Jesus Cristo foi natural e divinamente formado, sem se fiar na própria
habilidade, mas unicamente na eficiência do molde, lançam-se e perdem-se em
Maria para se tornarem o retrato natural de Jesus Cristo.
221. Bela e
verdadeira comparação! Quem a compreenderá, porém? Desejo que sejais vós,
querido irmão. Mas lembrai-vos que só se lança no molde o que está
fundido e líquido, isto é, que é mister destruir e fundir em vós o velho Adão,
para que venha a ser o novo em Maria.
Artigo VII
A maior glória de
Jesus Cristo
222. 7º Por
esta prática, fielmente observada, dareis a Jesus Cristo mais glória em um mês,
que por qualquer outra, embora mais difícil, em muitos anos. – Eis as razões do
que afirmo:
1º Porque,
fazendo vossas ações pela Santíssima Virgem, como esta
prática ensina, abandonais vossas próprias intenções e operações, ainda que
boas e conhecidas, para vos perder, por assim dizer, nas da Santíssima Virgem,
embora as desconheçais; e por aí entrais a participar da sublimidade de suas
intenções, que foram tão puras, que ela deu mais glória a Deus, pela menor das
suas ações, por exemplo, fiando na sua roca, dando um ponto de agulha, do que
um São Lourenço estendido na grelha, por seu cruel martírio, e mesmo que todos
os santos por suas mais heróicas ações; pelo que, durante sua vida neste
mundo, ela conquistou tal soma inefável de graças e méritos que se contariam
antes as estrelas do firmamento, as gotas d’água do mar e os grãos de areia das
praias; e ela deu mais glória a Deus que todos os anjos e santos reunidos e
como eles jamais deram nem poderão dar. Ó prodígio de Maria! vós só
podeis realizar prodígios de graça nas almas que querem de boa mente
abismar-se em vós.
223. 2º
Porque uma alma, por esta prática, considerando nada tudo o que pensa ou faz
por si mesma, e pondo todo o seu apoio e complacência nas disposições de Maria,
para aproximar-se de Jesus Cristo e até para falar-lhe, pratica mais humildade
que as almas que agem por si mesmas, que se apóiam e comprazem nas próprias
disposições. Conseqüentemente, ela glorifica mais altamente a Deus, que só é
glorificado perfeitamente pelos humildes e pequenos de coração.
224. 3º Porque
a Santíssima Virgem, querendo, por sua grande caridade, receber em suas mãos
virginais o presente de nossas ações, dá-lhes uma beleza e brilho
admiráveis; ela mesma as oferece a Jesus Cristo, e Nosso Senhor é assim mais
glorificado que se nós lhas oferecêssemos por nossas mãos criminosas.
225. 4º Enfim,
porque nunca pensais em Maria, sem que ela, em vosso lugar, pense em Deus.
Nunca a louvais nem honrais, sem que ela convosco louve e honre a Deus.
Maria está toda em conexão com Deus, e com toda a propriedade eu a chamaria a
relação de Deus, que só existe em referência a Deus, o eco de Deus, que só diz
e repete Deus. Santa Isabel louvou Maria e chamou-a bem-aventurada, porque ela
creu, e Maria, o eco fiel de Deus, entoou: “Magnificat anima mea Dominum – Minha
alma glorifica o Senhor” (Lc 1, 46). O que fez nessa ocasião,
Maria o faz todos os dias; quando a louvamos, amamos, honramos ou lhe damos
algo, Deus é louvado, amado, honrado, e recebe por Maria e em Maria.
Capítulo VIII
Práticas particulares
desta devoção
Artigo I
Práticas exteriores
226. Se
bem que o essencial desta devoção consista no interior, ela conta também
práticas exteriores que é preciso não negligenciar: “Haec oportuit
facere et illa non omittere” (Mt 23, 23); tanto porque as práticas
exteriores bem feitas ajudam as interiores, como porque relembram ao homem, que
se conduz sempre pelos sentidos, o que fez ou deve fazer; também porque são
próprias para edificar o próximo que as vê, o que já não acontece com as
práticas puramente interiores.
Nenhum
mundano, portanto, critique, nem meta aqui o nariz, dizendo que a verdadeira
devoção está no coração, que é preciso evitar exterioridades, que nisto pode
haver vaidade, que é preferível ocultar cada um sua devoção, etc. Respondo-lhes
com meu Mestre: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que
vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus”
(Mt 5, 16). Não quer isto dizer, como observa S. Gregório 86, que devamos fazer
nossas ações e devoções exteriores para agradar os homens e daí tirar louvores,
o que seria vaidade; mas fazê-las às vezes diante dos homens, com o fito de
agradar a Deus e glorificá-lo, sem, preocupar-nos com o desprezo ou os louvores
dos homens.
86) Homil.
II in Evangel.
Citarei
apenas abreviadamente algumas práticas exteriores, que não qualifico de
exteriores porque sejam feitas sem interior, mas porque contêm qualquer
exterioridade, e para distingui-las das que são estritamente interiores.
§ I. Consagração
depois de exercícios preparatórios.
227. Primeira
prática. Aqueles e aquelas que quiserem adotar esta devoção, que não
está erigida em confraria, como seria de desejar 87, depois de ter, como já
disse na primeira parte desta preparação ao reino de Jesus Cristo 88, empregando
ao menos doze dias em desapegar-se do espírito do mundo, contrário ao de Jesus
Cristo, dedicarão três semanas a encher-se de Jesus Cristo por intermédio da
Santíssima Virgem. Eis a ordem a observar:
87) Os votos
de S. Luís Maria de Montfort se realizaram. Sua querida devoção está ereta em
Arquiconfraria, cujos membros, já numerosos, se multiplicam dum modo
extraordinário.
88) Estas
palavras de S. Luís Maria parecem aludir a outra obra que teria servido de
introdução a esta, como por exemplo: “L’amour de la Sagesse éternelle” (Cf.
cap. VII e XVI).
228. Durante
a primeira semana aplicarão todas as orações e atos de piedade para pedir o
conhecimento de si mesmo e a contrição por seus pecados. Tudo farão em espírito
de humildade. Para isso poderão, se quiserem, meditar sobre o que ficou
dito sobre o nosso fundo de maldade (V. acima n. 78 e seguintes), e
considerar-se, nos seis dias desta semana, como uma lesma, um sapo, um porco,
uma serpente, um bode; ou, então, estas três palavras de São Bernardo: “Cogita
quid fueris, semen putridum; quid sis, vas stercorum; quid futurus sis, esca
verminum”. 89 Pedirão a Nosso Senhor e a seu Espírito Santo que os
esclareça, dizendo: “Domine, ut videam 90; ou “Noverim me” 91; ou “Veni,
Sancte Spiritus”, e dirão todos os dias a ladainha do Espírito Santo
e a oração que segue. Recorrerão à Santíssima Virgem e lhe pedirão esta grande
graça que deve ser o fundamento das outras, e para isso recitarão todos os dias
o “Ave, Maris Stella” e as ladainhas.
89) Pensa
no que fostes: um pouco de lodo; no que és: vaso de escórias; no que serás:
pasto de vermes” (São Bernardo, inter opera: Meditação sobre o conhecimento
da condição humana).
90) “Senhor,
fazei que eu veja” (Lc 18, 41).
91) Santo
Agostinho: “Que eu me conheça”.
229. Durante
a segunda semana, aplicar-se-ão em todas as suas orações e obras
cotidianas, em conhecer a Santíssima Virgem. Implorarão este conhecimento ao
Espírito Santo. Poderão ler e meditar o que já dissemos a respeito. Recitarão,
como na primeira semana, as ladainhas do Espírito Santo, o “Ave, Maris Stella”,
e mais um rosário todos os dias, ou pelo menos o terço, nesta intenção.
230. A
terceira semana será empregada em conhecer Jesus Cristo. Poderão ler e
meditar o que dissemos neste sentido, e recitar a oração de santo Agostinho,
inserida no número 67. Poderão, com o mesmo santo, dizer e repetir centenas de
vezes por dia: “Noverim te: Senhor, que eu vos conheça”,
ou então: Domine, ut videam – Senhor, fazei que eu veja quem sois”.
Como nas semanas precedentes, recitarão as ladainhas do Espírito Santo e o
“Ave, Maris Stella”, ajuntando as ladainhas do Santíssimo nome de Jesus.
231. Ao
fim destas três semanas, confessar-se-ão e comungarão na intenção de se darem a
Jesus Cristo na condição de escravos por amor, pelas mãos de Maria. E
depois da comunhão, que cuidarão de fazer conforme o método que segue (v. n.
266), recitarão a fórmula de consagração, que se encontra também adiante (v. p.
280); será necessário que a escrevam ou mandem escrever, se não estiver
impressa, e a assinem no mesmo dia em que a fizerem.
232. Nesse
dia, será bom renderem algum tributo a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima,
seja em penitência de sua infidelidade passada às promessas do batismo, seja em
sinal de sua dependência do domínio de Jesus e de Maria. Ora, esse tributo
será conforme a devoção e capacidade de cada um: um jejum, uma
mortificação, uma esmola, um círio. Ainda que não dêem mais que um alfinete em
homenagem, contanto que o dêem de bom coração, é o bastante para Jesus, que só
olha a boa vontade.
233. Todos os
anos, ao menos, no mesmo dia, renovarão a consagração, observando as mesmas
práticas durante três semanas.
Poderão até,
todos os meses e, quiçá, todos os dias, renovar, com as poucas palavras
seguintes, tudo o que fizerem: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt
– Sou todo vosso e tudo o que tenho vos pertence”, ó meu
amável Jesus, por Maria, vossa Mãe Santíssima. 92
92) Os
membros da Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações, ganham uma indulgência
de 300 dias todas as vezes que renovarem sua consagração, pelas palavras: “Sou
todo vosso, e tudo que possuo vos ofereço, ó meu amado Jesus, por Maria, vossa
Mãe Santíssima”.
§ II. Recitação da
coroinha da Santíssima Virgem.
234. Segunda
prática. Recitarão todos os dias de sua vida, sem, entretanto,
nenhum constrangimento, a coroinha da Santíssima Virgem, composta de três
Pai-Nossos e doze Ave-Marias, em honra dos doze privilégios e grandezas da
Santíssima Virgem. Esta prática é muito antiga e tem seu fundamento na
Sagrada Escritura. São João viu uma mulher coroada de doze estrelas,
vestida do sol e tendo a lua debaixo de seus pés (Ap 12, 1) e esta
mulher, na opinião dos intérpretes 93, é a Santíssima Virgem.
93) Entre
outros, S. Agostinho (Tratct. De Symbolo ad Catechumenos, 1. IV, cap. I); S.
Bernardo (Sermo super “Signum Magnum”, n. 3).
235. Há muitos
modos de rezar bem esta coroinha e seria demasiado longo mencioná-los. O
Espírito Santo o inspirará àqueles e àquelas que mais fiéis se mostrarem a esta
devoção. Para rezá-la bem simplesmente é preciso dizer em primeiro lugar: “Dignare
me laudare te, Virgo sacrata; da mihi virtutem contra hostes tuos” 94; em
seguida, reza-se o credo, depois um Pai-Nosso, quatro Ave-Marias e um Glória ao
Pai; ainda um Pai-Nosso, quatro Ave-Marias, e um Glória ao Pai; e assim por
diante. Ao terminar, diz-se: “Sub tuum praesidium”.
94) “Fazei-me
digno de vos louvar, ó Virgem sagrada, e dai-me força contra os vossos
inimigos”.
§ III. Usar pequenas
cadeias de ferro.
236. Terceira
prática. É muito louvável, glorioso e útil àqueles e àquelas, que assim
demonstrarão ser escravos de Jesus em Maria, trazer, como sinal de sua amorosa
escravidão, pequenas cadeias de ferro, bentas com uma bênção especial. 95
95)
Poder-se-ia crer que certos decretos das Congregações Romanas tenham proibido
terminantemente o uso dessas pequenas cadeias. Nada vemos, contudo, nesses
decretos que interdite esta prática símbolo da escravidão a Jesus em Maria, no
que consiste propriamente a devoção do B. Montfort (V. Analecta Iuris
Pontificii, 1ª série, col. 757).
Estas
demonstrações exteriores não são na verdade, essenciais, e uma pessoa pode bem
se dispensar, embora tenha abraçado esta devoção. Não posso, contudo,
esquivar-me a louvar aqueles e aquelas que, depois de terem rompido as cadeias
vergonhosas da escravidão do demônio, a que os tinha arrastado o pecado
original, e talvez os pecados atuais, se entregaram voluntariamente à gloriosa
escravidão de Jesus Cristo e com S. Paulo se gloriam de estar
acorrentados por Jesus Cristo (cf. Ef 3, 1), com correntes que, embora
de ferro e sem brilho, são mais gloriosas e mais preciosas que todos os colares
de ouro dos imperadores.
237. Nos
tempos de outrora era a cruz o que havia de mais infamante; hoje, no entanto, é
o símbolo mais glorioso do cristianismo. Digamos o mesmo dos ferros da
escravidão. Nada havia de mais ignominioso entre os antigos, e ainda atualmente
entre os pagãos.
Entre os
cristãos, porém, são mais ilustres, pois elas nos livram e preservam dos
liames vergonhosos do pecado e do demônio; elas nos restituem a liberdade e nos
ligam a Jesus e Maria, não a contragosto e a força, como a forçados, mas por
caridade, por amor, como filhos: “Traham eos in vinculis
caritatis” (Os 11, 4) – eu os atrairei a mim, diz Deus pela boca do
profeta, com os vínculos da caridade, que, por conseqüência, são fortes como a
morte (cf. Ct 8, 6), e, de certo modo, mais fortes naqueles que
fielmente trouxeram, até a morte, esses distintivos gloriosos.
Pois a morte,
destruindo-lhes embora o corpo e reduzindo-o à podridão, não destruirá as
algemas de sua escravidão, as quais por serem de ferro, não se corrompem tão
facilmente. E, no dia da ressurreição dos corpos, no juízo final, quem sabe,
essas cadeias, pendentes ainda de seus ossos, não virão a constituir uma parte
de seus ossos, não virão a constituir uma parte de sua glória, mudando-se em
cadeias de luz e de glória? Felizes, portanto, mil vezes felizes os escravos
ilustres de Jesus em Maria, que até ao túmulo usarem essas cadeias!
238. Eis
os motivos por que se usam estas cadeiazinhas:
1º Relembram
ao cristão os votos e compromissos do batismo, a
renovação perfeita das promessas batismais que ele fez por esta devoção, e a
estrita obrigação em que está de se conservar fiel. O homem,
porque se deixa levar mais pelos sentidos do que pela fé pura, esquece
facilmente suas obrigações para com Deus, se não tiver algo que lhas traga à
memória.
Por isso
estas pequenas cadeias servem para lembrar ao cristão aquelas cadeias do
pecado e da escravidão do demônio, de que o santo batismo o
livrou, e a dependência que, neste sacramento, votou a Jesus Cristo, e
a ratificação dessa dependência, feita ao renovar os seus votos; e um dos
motivos por que tão poucos cristãos pensam nas promessas do santo batismo, e
vivem com tanta libertinagem como se nada houvessem prometido a Deus, como se
fossem pagãos, é não trazerem nenhuma marca ou distintivo exterior que disso os
relembre.
239. 2º
Mostra que ele não se envergonha de ser escravo e servo de Jesus Cristo, e que
renunciou à escravidão funesta do mundo, do pecado e do demônio.
3º Garantem-no
e preservam-no dos grilhões do pecado e do demônio, pois, ou estaremos
agrilhoados pelas correntes do inimigo, ou traremos as cadeias da caridade e da
salvação: “Vincula peccatorum; in vinculis caritatis”.
240. Ah! querido
irmão, despedacemos os grilhões do pecado e dos pecadores, do mundo e dos
mundanos, do demônio e de seus asseclas, e lancemos longe de nós seu jugo
funesto: “Dirumpamus vincula eorum et proiiciamus a nobis iugum ipsorum”
(Sl 2, 3). Metamos nossos pés, para servir-nos das palavras do Espírito Santo,
em seus ferros gloriosos e nosso pescoço em suas cadeias: “Iniice pedem tuum
in compedes illius, e in torques illius collum tuum” (Ecli 6, 25).
Curvemos os
ombros e carreguemos a Sabedoria, que é Jesus Cristo, e não nos enfademos de
suas correntes: “Subiice humerum tuum et porta illam, et ne acedieris
vinculis eius” (Ecli 6, 26). Notareis que o Espírito Santo, antes de dizer
estas palavras, prepara a alma, a fim de que ela não rejeite o importante
conselho. Eis as suas palavras: “Audi fili, et accipe consilium intellectus,
et ne abiicias consilium meum – Ouve, filho, e recebe uma sábia advertência,
e não rejeites o meu conselho” (Ecli 6, 24).
241. Permiti,
caríssimo amigo, que me una aqui ao Espírito Santo, para dar-vos o mesmo
conselho: “Vincula illius, alligatura salutaris” (Ecli 6, 31) – Suas
cadeias são cadeias de salvação. Jesus pendente da cruz deve atrair tudo a si,
e tudo, de bom ou mau grado, será atraído. Do mesmo modo ele atrairá os
réprobos pelas correntes de seus pecados, para acorrentá-los, como forçados e
demônios, à sua ira eterna e à sua justiça vingadora. Nos últimos tempos,
porém, atrairá especialmente os predestinados, pelas cadeias da caridade:
“Omnia grahan ad meipsum” (Jo 12, 32). “Trahan eos in vinculis
caritatis” (Os 11, 4).
242. Esses
amorosos escravos de Jesus Cristo ou acorrentados de Jesus Cristo, “vincti
Christi” (Ef 3, 1), podem usar suas cadeias ou ao pescoço ou no braço, ou
na cintura, ou nos pés. O padre Vicente Caraffa, sétimo geral da Companhia de
Jesus, falecido em odor de santidade no ano 1643, usava, como sinal de sua
servidão, um círculo de ferro nos pés, e dizia que lamentava não poder arrastar
publicamente os grilhões. A madre Inês de Jesus, a quem já nos referimos (n.
170), trazia sempre uma corrente de ferro na cintura. Outros a usaram ao
pescoço, em penitência pelos colares de pérola que costumam usar no mundo.
Outros a usaram no braço, para se lembrarem, no trabalho manual, que eram
escravos de Jesus Cristo.
§ IV. Devoção especial
ao mistério da Encarnação.
243. Quarta
prática. Terão uma devoção especial pelo mistério da Encarnação do
Verbo, a 25 de março 96, que é o mistério adequado a esta devoção, pois que
esta devoção foi inspirada pelo Espírito Santo:
1º para honrar
e imitar a dependência em que Deus Filho quis estar de Maria, para glória de
Deus seu Pai e para nossa salvação; dependência que transparece particularmente
neste mistério em que Jesus se torna cativo e escravo no seio de Maria
Santíssima, aí dependendo dela em tudo;
2º para
agradecer a Deus as graças incomparáveis que concedeu a Maria, principalmente
por tê-la escolhido para sua Mãe digníssima, escolha feita neste mistério. São
estes os dois fins principais da escravização a Jesus Cristo em Maria.
96) No dia
25 de março, todos os membros da Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações,
podem ganhar uma indulgência plenária.
244. Peço-vos
notar que digo ordinariamente: “o escravo de Jesus em Maria, a
escravização a Jesus em Maria”. Pode-se, é verdade, dizer como muitos
já o disseram até aqui, “o escravo de Maria, a escravidão da Santíssima
Virgem”. Creio, porém, que é melhor dizer “escravo de Jesus em
Maria” como aconselhava M. Tronson, superior geral do seminário de S.
Sulpício, o qual era conhecido por sua rara prudência e grande piedade. Assim
aconselhou ele a um eclesiástico que o consultou sobre o assunto. As razões são
estas:
245. 1º
Visto estarmos num século orgulhoso, em que pululam os sábios
enfatuados, os espíritos fortes e críticos, que sempre acham o que falar das
mais sólidas e bem estabelecidas práticas de piedade, é preferível, para
evitar-lhes ocasião de crítica desnecessária, dizer “escravidão de Jesus
em Maria” e dizer-se “escravo de Jesus Cristo” do que escravo de Maria.
Assim a denominação desta devoção será dada antes pelo caminho e meio para
atingir este fim, Maria Santíssima. Pode-se, entretanto, usar uma ou outra sem
o menor escrúpulo, como eu faço. Um homem, por exemplo, que vai de Orleans a
Tours pelo caminho de Amboise, pode evidentemente dizer que vai a Amboise e que
vai a Tours. A única diferença é que Amboise é apenas o caminho para ir a Tours
e Tours é o fim, o termo de sua viagem.
246. Como
o principal mistério que se celebra e honra nesta devoção é o mistério da
Encarnação, no qual só se pode contemplar Jesus em Maria, e encarnado
em seu seio, é mais adequado dizer-se “a escravidão de Jesus em Maria”,
de Jesus residindo e reinando em Maria, conforme a bela oração de tantos homens
célebres: “Ó Jesus vivendo em Maria, vinde e vivei em nós, em vosso
espírito de santidade”, etc.
247. 3º
Este modo de falar patenteia ainda mais a união íntima entre Jesus e Maria. Tão
intimamente estão unidos que um é tudo no outro: Jesus é tudo em Maria e Maria
é tudo em Jesus; ou, melhor, ela já não existe, mas Jesus somente nela, e antes
se separaria do sol a luz, do que apartar Maria de Jesus. É assim que se pode
chamar Nosso Senhor “Jesus de Maria”, e a Santíssima Virgem “Maria de Jesus”.
248. O tempo não
me permite deter-me aqui para explicar as excelências e as grandezas do mistério
de Jesus vivendo e reinando em Maria, ou a Encarnação do Verbo.
Contento-me, por isso, em dizer, em três palavras, que é este o primeiro
mistério de Jesus Cristo, o mais oculto, o mais elevado e o menos conhecido;
que é neste mistério que Jesus, em colaboração com Maria, em seu seio, e por
isto chamado pelos santos “aula sacramentorum”, sala dos segredos de
Deus 97, escolheu todos os eleitos; que foi neste mistério que ele operou todos
os mistérios subseqüentes de sua vida, pela aceitação deles: “Iesus ingrediens
mundum dicit: Ecce venio ut faciam, Deus, voluntatem tuam” (Hb 10,
5-9).
Por
conseguinte, este mistério é um resumo de todos os mistérios, e contém a
vontade e a graça de todos. Este mistério é, enfim, o trono da
misericórdia, da liberdade e da glória de Deus. O trono da
misericórdia de Deus, porque, já que não podemos aproximar-nos de
Jesus senão por Maria, não podemos ver Jesus nem falar-lhe senão por intermédio
de Maria. Jesus atende sempre a sua querida Mãe e concede sempre sua
graça e sua misericórdia aos pobres pecadores: “Adeamus ergo cum fiducia ad
thronum gratiae – Cheguemo-nos, pois, confiadamente, ao trono da
graça” (Hb 4, 16).
É o trono de
sua liberalidade para Maira, porque este novo Adão, enquanto permaneceu nesse
verdadeiro paraíso terrestre, aí realizou ocultamente tantas maravilhas
que nem os anjos nem os homens as compreendem; por isso os santos
chamaram Maria a magnificência de Deus: “Magnificentia Dei” 98, como se
Deus só fosse magnífico em Maria: “Solummodo ibi magnificus Dominus” (Is
33, 21). É o trono de sua glória para seu Pai, pois foi em Maria
que Jesus Cristo acalmou perfeitamente seu Pai irritado contra os homens; que
ele recuperou perfeitamente a glória que o pecado lhe tinha arrebatado, e que,
pelo sacrifício, que neste mistério fez da sua vontade e de si mesmo, lhe deu
mais glória como jamais lhe deram todos os sacrifícios da antiga lei, e,
finalmente, lhe deu uma glória infinita como ainda não recebera de criatura
humana.
97) S.
Ambrósio: De Instit. Virg., cap. VII, n. 50.
98) Ricardo
de São Lourenço: De laud. Virg. IV.
§ V. Grande devoção à
Ave-Maria e ao terço.
249. Quinta
prática. Terão grande devoção ao recitar a Ave-Maria, ou a
Saudação Angélica, da qual bem poucos cristãos, mesmos esclarecidos,
conhecem o valor, o mérito, a excelência e a necessidade. Foi preciso que a
Santíssima Virgem aparecesse várias vezes a grandes santos muito doutos, para
demonstrar-lhes o mérito desta pequena oração, como sucedeu a S. Domingos, a S.
João Capistrano, ao bem-aventurado Alano de la Roche. E eles compuseram
livros inteiros sobre as maravilhas e a eficácia da Ave-Maria, para conversão
das almas.
Altamente
publicaram e pregaram que a salvação do mundo começou pela Ave-Maria,
e a salvação de cada um em particular está ligada a esta prece; que foi esta
prece que trouxe à terra seca e árida o fruto da vida, e que é esta mesma prece
que deve fazer germinar em nossa alma a palavra de Deus e produzir o fruto da
vida, Jesus Cristo; que a Ave-Maria é um orvalho celeste, que umedece a
terra, isto é, a alma, para fazer brotar o fruto no tempo adequado; e que uma
alma que não for orvalhada por esta prece ou orvalho celeste não dará fruto
algum, nem dará senão espinhos, e não estará longe de ser amaldiçoada
(Hb 6, 8).
250. No livro “De
dignitate Rosarii” do bem-aventurado Alano de la Roche, lê-se o seguinte
que a Santíssima Virgem lhe revelou: “Saibas, meu filho, e comunica-o a
todos, que um sinal provável e próximo de condenação eterna é a aversão, a
tibieza, a negligência em rezar a Saudação Angélica, que foi a reparação de
todo o mundo – Scias enim et secure inteligas et inde late omnibus
patefacias, quod videlicet signum probabile est et propinquum aeternae
damnationis horrere e acediari ac negligere Salutationem angelicam, totius
mundi reparationem” (cap. II).
Eis aí palavras
consoladoras e terríveis, que se custaria a crer, se não no-la
garantissem esse santo homem e antes dele S. Domingos, como, depois dele,
muitos personagens fidedignos, com a experiência de muitos séculos. Pois sempre
se verificou que aqueles que trazem o sinal de condenação, como os hereges, os
ímpios, os orgulhosos, e os mundanos, odeiam e desprezam a Ave-Maria e o
terço.
Os hereges
ainda aprendem e recitam o Pai-Nosso, mas abominam a Ave-Maria
e o terço. Trariam antes uma serpente sobre o peito do que o rosário ou
o terço. Os orgulhosos também, embora católicos, mas tendo as mesmas
inclinações que seu pai Lúcifer, desprezam ou mostram uma indiferença completa
pela Ave-Maria, considerando o terço uma devoção efeminada,
suficiente para os ignorantes e analfabetos. Ao contrário, tem-se visto e a
experiência o prova que aqueles e aquelas que possuem outros e grandes indícios
de predestinação, amam, apreciam e recitam com prazer a Ave-Maria.
E que quanto mais são de Deus, tanto mais amam esta oração. É o
que a Santíssima Virgem diz também ao bem-aventurado Alano, em seguida às
palavras que citei.
251. Não sei
como isto acontece nem por que; entretanto é verdade, e não conheço melhor
segredo para verificar se uma pessoa é de Deus, do que examinar se gosta ou não
de rezar a Ave-Maria e o terço. Digo: gosta, pois pode acontecer
que alguém esteja na impossibilidade natural ou até sobrenatural de dizê-la,
mas sempre a ama e a inspira aos outros.
252. Almas
predestinadas, escravas de Jesus em Maria, aprendei que a Ave-Maria é a
mais bela de todas as orações, depois do Pai-Nosso. É a saudação
mais perfeita que podeis fazer a Maria, pois é a saudação que o Altíssimo indicou
a um arcanjo, para ganhar o coração da Virgem de Nazaré. E tão
poderosas foram aquelas palavras, pelo encanto secreto que contêm, que
Maria deu seu pleno consentimento para a Encarnação do Verbo, embora relutasse
em sua profunda humildade. É por esta saudação que também vós
ganhareis infalivelmente seu coração, contanto que a digais como deveis.
253. A
Ave-Maria, rezada com devoção, atenção e modéstia, é, como dizem
os santos, o inimigo do demônio, pondo-o logo em fuga, e o martelo que o
esmaga; a santificação da alma, a alegria dos anjos, a melodia dos
predestinados, o cântico do Novo Testamento, o prazer de Maria e a glória da
Santíssima Trindade. A Ave-Maria é um orvalho celeste que torna a alma
fecunda; é um beijo casto e amoroso que se dá em Maria, é uma rosa vermelha que
se lhe apresenta, é uma pérola preciosa que se lhe oferece, é uma taça de
ambrosia e de néctar divino que se lhe dá. Todas estas comparações são de
santos ilustres.
254. Rogo-vos
instantemente, pelo amor que vos consagro em Jesus e Maria, que não vos
contenteis de recitar a coroinha de Santíssima Virgem, mas também o vosso
terço, e até, se houver tempo, o vosso rosário, todos os dias, e abençoareis,
na hora da morte, o dia e a hora em que me acreditastes; e, depois de ter semeado
sob as bênçãos de Jesus e de Maria, colhereis bênçãos eternas no céu: Qui
seminat in benedictionibus, de benedictionibus et metet” (2Cor 9, 6).
§ VI. Recitação do
Magnificat
255. Sexta
prática. Para agradecer a Deus pelas graças que concedeu à Santíssima Virgem,
dirão freqüentemente o Magnificat, a exemplo da bem-aventurada Maria d’Oignies
e de muitos outros santos.
É a única
oração e a única obra composta por Maria, ou, melhor, que Jesus fez por meio
dela, pois ele fala pela boca de sua Mãe Santíssima. É o maior
sacrifício de louvor que Deus já recebeu na lei da graça. É dum lado, o mais
humilde e o mais reconhecido e, doutro, o mais sublime e mais elevado de todos
os cânticos. Há neste cântico mistérios tão grandes e tão ocultos, que os
próprios anjos ignoram.
Gerson, que
foi um doutor tão sábio quanto piedoso, depois de empregar grande parte de sua
vida escrevendo tratados cheios de erudição e piedade, sobre os mais difíceis
temas, tremeu e vacilou no fim da carreira, ao empreender a explicação do
Magnificat, com que tencionava coroar todas as suas obras. Num volume in-folio,
ele nos diz coisas admiráveis do belo e divino cântico.
Entre
outras, afirma que a Santíssima Virgem o recitava muitas vezes sozinha,
principalmente depois da santa comunhão, em ação de graças. O sábio
Benzônio, num explicação do mesmo cântico, cita vários milagres operados
por sua virtude, e diz que os demônios tremem e fogem, quando ouvem as palavras
do Magnificat: “Fecit potentiam in brachio suo, dispersit superbos
mente cordis sui” (Lc 1, 51).
§ VII. O desprezo pelo
mundo.
256. Sétima
prática. Os fiéis servos de Maria devem desprezar, odiar e fugir ao
mundo corrompido, e servir-se das práticas de desprezo pelo mundo, que
assinalamos na primeira parte.99
99) V. nota
3 do n. 227. Cf. “L’Amour de la Sagesse éternelle”, cap. XVI.
Artigo II
Práticas especiais e
interiores para os que querem tornar-se perfeitos
257. Além das
práticas exteriores da devoção que vimos referindo, as quais não se deve omitir
por negligência ou desprezo, na medida que o estado e as condições de cada um o
permitem, acrescentamos algumas práticas interiores assaz santificantes para
aqueles chamados pelo Espírito Santo a mais alta perfeição.
Consiste, em
quatro palavras, em fazer todas as suas ações por Maria, com Maria, em
Maria e para Maria, a fim de fazê-las mais perfeitamente por Jesus, com Jesus,
em Jesus e para Jesus.
§ I. Fazer todas as
ações por Maria.
258. 1º
É preciso fazer todas as ações por Maria, quer dizer, em todas as coisas
obedecer à Santíssima Virgem, e em tudo conduzir-se por seu espírito, que é o
santo espírito de Deus. São filhos de Deus os que se conduzem pelo espírito de
Deus: “Qui spiritu Dei aguntur, ii sunt filii Dei” (Rm 8, 14). E
os que pautam sua conduta pelo espírito de Maria são filhos de Deus, como já
demonstramos; entre tantos devotos da Santíssima Virgem, só os que se conduzem
por seu espírito é que são devotos verdadeiros e fiéis.
Disse que o espírito
de Maria é o espírito de Deus, porque ela jamais se conduziu por seu
próprio espírito, e sempre pelo espírito de Deus, e este de tal modo a dominou
que acabou tornando-se seu próprio espírito. Por isto, diz Santo Ambrósio: “Sit
in singulis... etc. – Esteja a alma de Maria em cada um para
glorificar o Senhor; esteja em cada um o espírito de Maria para que se regozija
em Deus”.100 Quão feliz é uma alma quando, a exemplo do bom irmão
jesuíta Rodriguez101, falecido em odor de santidade, é toda possuída e
governada pelo espírito de Maria, que é um espírito suave e forte, zeloso e
prudente, humilde e corajoso, puro e fecundo!
100)
Palavras já citadas e comentadas no n. 217.
101)
Canonizado por Leão XIII, em 15 de janeiro de 1888.
259. Para que a
alma se deixe conduzir por este espírito de Maria, é mister:
1º Renunciar
ao próprio espírito, às próprias luzes e vontades, antes de qualquer coisa: por
exemplo, antes da oração, antes de dizer ou ouvir a santa missa, antes de
comungar, etc...; pois as trevas de nossa vontade própria,
se bem que nos pareçam boas, poriam obstáculo ao santo espírito de Maria.
2º É preciso
entregar-se ao espírito de Maria para ser por ele movido e conduzido como ela
quiser. Cumpre colocar-se e permanecer entre suas mãos
virginais como um instrumento nas mãos dum operário, como uma cítara nas mãos
dum artista. Cumpre abandonar-se e perder-se nela, como uma pedra que se atira
ao mar.
E isto se
faz simplesmente e num instante, por um só olhar do espírito, um pequeno
movimento da vontade, ou verbalmente. Dizendo, por exemplo: “Renuncio a
mim mesmo, dou-me a vós, minha querida Mãe”. E ainda que não sintamos
nenhuma doçura sensível neste ato de união, ela não deixa de ser verdadeiro, do
mesmo modo que, se disséssemos, com desagrado de Deus: “Dou-me ao demônio”,
com a mesma sinceridade, embora o disséssemos sem mudança alguma sensível, não
pertenceríamos menos verdadeiramente ao demônio.
3º É
preciso, de tempos em tempos, durante uma ação ou depois, renovar o ato de
oferecimento e de união, e, quanto mais o fizermos, mais cedo nos
santificaremos, e mais cedo chegaremos à união com Jesus Cristo, que segue
sempre necessariamente a união com Maria, pois o espírito de Maria é o espírito
de Jesus.
260. 2º É
mister fazer todas as ações com Maria, isto é, em todas as ações olhar Maria
como um modelo acabado de todas as virtudes e perfeições, que o Espírito Santo
formou numa pura criatura, e imitá-lo na medida de nossa capacidade.
Cumpre, portanto, que, em cada ação, consideremos como Maria a fez ou faria se
estivesse em nosso lugar. Devemos, por isso, examinar e meditar as
grandes virtudes que ela praticou durante a vida, especialmente:
1º sua fé
viva, pela qual creu fielmente e constantemente até ao pé da cruz, sobre o
Calvário;
2º sua
humildade profunda que a levou a esconder-se, a calar-se, a submeter-se a tudo
e a colocar-se em último lugar;
3º sua
pureza virginal, que jamais teve nem terá semelhante sob o céu, e por fim todas
as suas outras virtudes.
Lembrai-vos,
repito-o uma segunda vez, de que Maria é o grande e único molde de Deus102
próprio para fazer imagens vivas de Deus, com pouca despesa e em pouco tempo; e
que uma alma que encontrou este molde, e que nele se perde, fica em breve
mudada em Jesus Cristo, aí representado ao natural.
102) Ver
antes, n. 218 seg.
§ III. Fazer todas as
ações em Maria.
261. 3º É
preciso fazer todas as ações em Maria.
Para
compreender cabalmente esta prática, é necessário saber que a Santíssima Virgem
é o verdadeiro paraíso terrestre do novo Adão, de que o antigo paraíso
terrestre é apenas figura. Há, portanto, neste paraíso terrestre, riquezas,
belezas, raridades e doçuras inexplicáveis, que o novo Adão, Jesus Cristo, aí
deixou.
Neste
paraíso ele pôs suas complacências durante nove meses, aí operou suas
maravilhas e aí acumulou riquezas com a magnificência de um Deus. Este lugar
santíssimo é formado de uma terra virgem e imaculada, da qual se formou e
nutriu o novo Adão, sem a menor mancha ou nódoa, por operação do Espírito Santo
que aí habita.
É neste
paraíso terrestre que está em verdade a árvore da vida que produziu Jesus
Cristo, o fruto da vida; a árvore da ciência do bem e do mal, que deu a
luz ao mundo. Há, neste lugar divino, árvores plantadas pela mão de
Deus e orvalhadas por sua unção divina, árvores que produziram e produzem,
todos os dias, frutos maravilhosos dum sabor divino; há canteiros esmaltados de
belas e variegadas flores de virtudes, cujo perfume delicia os próprios anjos.
Ostentam-se
neste lugar prados verdes de esperança, torres fortes e inexpugnáveis e fortes,
habitações cheias de encanto e segurança, etc. Ninguém, exceto o Espírito
Santo, pode dar a conhecer a verdade oculta sob estas figuras de coisas
materiais. Reina neste lugar um ar puro, sem infecção, um ar de pureza;
um belo dia sem noite, da humanidade santa; um belo sol sem sombras, da
Divindade; uma fornalha ardente e contínua de caridade, na qual todo o ferro
que aí se lança fica abrasado e se transforma em ouro; há um rio de humildade
que surge da terra, e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo este lugar
encantado: são as quatro virtudes cardeais.
262. O Espírito
Santo, pela boca dos Santos Padres, chama também a Santíssima Virgem:
1º a porta
oriental, por onde o sumo sacerdote Jesus Cristo entra e vem ao mundo (cf. Ez 44,
2-3); por ela entrou da primeira vez, e por ela virá da segunda;
2º o
santuário da Divindade, o reclinatório da Santíssima Trindade, o trono de Deus,
a cidade de Deus, o altar de Deus, o templo de Deus, o mundo de Deus. Todos estes
diferentes epítetos e louvores são verdadeiros em relação às diversas
maravilhas e graças que o Altíssimo realizou em Maria. Oh! que riqueza! que
glória! que prazer! que felicidade poder entrar e habitar em Maria, em quem o
Altíssimo colocou o trono de sua glória suprema!
263. Mas
quão difícil é a pecadores, como somos, alcançar a permissão e a capacidade e a
luz para entrar em lugar tão alto e tão santo, guardado não por um
querubim, como o antigo paraíso terrestre, mas pelo próprio Espírito Santo, que
nele se tornou o Senhor absoluto e do qual diz: “Hortus conclusus soror mea
sponsa, hortus conclusus, fons signatus” (Ct 4, 12). Maria é fechada; Maria
é selada; os miseráveis filhos de Adão e Eva, expulsos do paraíso terrestre, só
tem acesso a este outro paraíso por uma graça especial do Espírito Santo, a
qual devem merecer.
264. Depois
que, pela fidelidade, obtivermos esta graça insigne, é com complacência que
devemos morar no belo interior de Maria, aí repousar em paz, aí apoiar-nos com
toda a confiança, aí seguramente esconder-nos e perder-nos sem reserva,
a fim de que neste seio virginal:
1º a alma se
alimente do leite de sua graça e de sua misericórdia maternal;
2º aí fique
livre de suas perturbações, de seus temores e escrúpulos:
3º aí esteja
em segurança, ao abrigo de todos os seus inimigos, o demônio, o mundo e o
pecado, que aí não tem jamais entrada; e por isso ela diz que os que operam
nela, não pecarão: “Qui operantur in me, non peccabunt” (Ecli
24, 30), isto é, os que em espírito, habitam a Santíssima Virgem, não cometerão
pecado grave;
4º para que
a alma fique formada em Jesus Cristo e Jesus Cristo nela; porque o
seu seio, como dizem os Santos Padres103, é a sala dos sacramentos divinos,
onde Jesus Cristo e todos os eleitos se formaram: “Homo et homo natus est
in ea” (Sl 86, 5).104
103) Ver
acima n. 248: “Aula sacramentorum”.
104) Sobre
este texto, veja-se o comentário de nosso Santo, n. 32.
§ IV. Fazer todas as
ações para Maria.
265. 4º É
preciso fazer finalmente todas as ações para Maria.
Porque,
desde que nos entregamos completamente a seu serviço, é justo que façamos tudo
para ela, como um criado, um servo, um escravo. Não a tomamos, porém, como fim
último de nossos serviços, que é somente Jesus Cristo, mas como fim próximo,
intermédio misterioso, e o meio mais fácil de chegar a ele.
A exemplo de
um bom servo e escravo, é preciso que não fiquemos ociosos, e sim que, apoiados
por sua proteção, empreendamos e realizemos grandes coisas para tão augusta
Soberana. É preciso defender seus privilégios quando alguém os disputar;
sustentar sua glória, quando alguém a atacar; atrair todo o mundo, se for
possível, ao seu serviço e a esta verdadeira e sólida devoção; falar, clamar
contra todos os que abusem de sua devoção para ultrajar seu Filho; e ao mesmo
tempo estabelecer esta verdadeira devoção.
E como
recompensa destes pequenos serviços, não devemos pretender mais que a honra de
pertencer a uma Princesa tão amável, e a felicidade de, por meio dela, ficarmos
unidos a Jesus Cristo, seu Filho, com um liame indissolúvel no tempo e na
eternidade.
Glória a
Jesus em Maria!
Glória a
Maria em Jesus!
Glória a
Deus somente!